segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Contra Neuro-Bobagem [Edward Feser]

Contra Neuro-Bobagem

Contra Neuro-Bobagem

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Cada letra escrita da palavra em português "sopa" é feita de marcações que se parecem vagamente com "s", "o", "p" e "a". É claro, não segue que a palavra "sopa" é idêntica a qualquer coleção de tais marcas, ou que suas propriedades seguem as propriedades materiais de tais marcas, ou que ela possa ser explicada inteiramente em termos das propriedades materiais de tais marcas. Qualquer um que pensa no assunto sabe disto.

Para tomar emprestado um exemplo do psicólogo Jerome Kagan, "Enquanto um observador lentamente se aproxima da pintura do amanhecer no Siena feita por Claude Monet chega um momento em que a cena dissolve-se em pequenas pinceladas de cor". Mas não segue que sua situação e qualidades como pintura se reduzem a, sobrescrevem, ou possam ser explicadas inteiramente em termos das propriedades materiais das pinceladas de cor. Qualquer um que imagina o assunto sabe disso também.

Por algum motivo, porém, quando neurocientistas descobrem alguma correlata neural deste ou daquele evento ou processo mental, uma certa espécie de materialista conclui que a identidade da, ou sobrescrição, ou redutibilidade a, ou completa explanação da mente em termos de processos neurais é tudo menos um assunto acabado, e que as reservas de não materialistas são apenas má fé muito intelectualmente desonesta. Em uma peça aberta online recentemente para o New York Times, e numa frase apropriada, o filósofo da mente Tyler Burge critica esta tendência como "neuro-bobagem", que produz apenas "ilusão de conhecimento". Pois isto é tão falacioso quanto qualquer argumento paralelo sobre palavras ou obras de arte poderia ser.

Agora uma fonte de neuro-bobagem é a suposição materialista padrão mas falsa que as únicas alternativas dualísticas para uma "abordagem" naturalista da mente são ou o dualismo de substância cartesiano ou o dualismo de propriedade, com seu problema da interação de brinde. Para ter certeza, e como eu tenho notado muitas vezes, materialistas geralmente descompreendem profundamente mesmo estas formas de dualismo (ou pelo menos as formas cartesianas) e dirigem suas objeções em espantalhos toscos. [Para alguns exemplos, veja este post em Daniel Stoljar, e minha série de quatro posts sobre Paul Churchland, aqui, aqui, aqui e aqui. Para uma discussão sobre a superficialidade dos argumentos materialistas em geral, veja este post em Frank Jackson e este post sobre (o não-raso) Noam Chomsky.

Ainda assim, de um ponto de vista aristotélico-tomista (A-T), mesmo o dualismo cartesiano é um erro modernista, o "irmão malvado" do materialismo. Ele exagera a divisa entre mente e matéria, assim como o materialismo exagera a afinidade deles. (Para o A-T, muitas posições são "gêmeos malignos" neste sentido – racionalismo e empiricismo, libertarismo e socialismo, deontologia kantiana e utilitarismo, e por aí vai – cada um removendo um entendimento genuíno do modelo metafísico clássico no qual ele faz sentido e então confundindo-o com uma grotesca caricatura de si mesmo ignorando o entendimento oposto em balanceamento. Eu estive pensando em escrever um post sobre o assunto, mas ele é abordado ao menos indiretamente no The Last Superstition.)

A abordagem A-T é aquela que David Oderberg chamara "dualismo hilemórfico". Ao contrário do dualismo cartesiano, que encara o ser humano como composto de duas substâncias, res cogitans e res extensa, dualismo hilemórfico encara o ser humano como uma substância simples. Mas ao contrário do materialismo, que tende a encarar substâncias como redutíveis a suas partes componentes e que é comprometida com uma concepção mecanicista da matéria que nega a realidade de causas formais e finais, dualismo hilemórfico é não-reducionista, e encara seres humanos, bem como todas as substâncias materiais, como compostas de forma e matéria. (A visão é não-reducionista apesar de encarar substâncias materiais como compostas de forma e matéria, porque ela não as reduz a forma e matéria. Uma árvore, por exemplo, é um composto de certo tipo de forma e matéria, mas a forma e matéria em si não podem fazer sentido à parte da árvore de quem elas formam partes metafísicas. A análise é holística.)

"Alma" nesta visão é apenas um termo técnico para o corpo vivo. E a visão é dualista, não porque afirma a existência da alma (plantas e animais não-humanos têm formas, e portanto "almas", mas são puramente materiais) mas em vez disso porque toma seres humanos como tendo capacidades especiais que não envolvem um órgão material – a saber, suas capacidades intelectuais. Não existe nenhum "problema de interação" para o dualismo hilemórfico, porém, porque a alma não é (como o é para Descartes) uma substância distinta que precisa de algo para entrar em contato com uma substância material via causação eficiente; ela é em vez disso apenas parte de uma substância completa – a causa formal da substância, de quem a matéria compondo o corpo é a causa material. O relacionamento entre alma e corpo portanto não é como aquele de duas bolas de bilhar, uma delas fantasmagórica, que tem de encontrar uma maneira de tocar uma na outra. É mais como o relacionamento entre o formato de um triângulo e a tinta que foi usada em seu formato – dois aspectos de uma coisa, em vez de duas coisas. Ou é como o relacionamento entre o significado de uma palavra e as letras que fazem a palavra, ou o relacionamento entre o conteúdo pictórico de uma pintura e as manchas de cor que fazem a pintura. (Provavelmente a maioria de meus leitores estará familiarizada com estas ideias, mas para aqueles que não estão, eu tenho falado delas em detalhes em muitos outros lugares, mais completamente no capítulo 4 de Aquinas.)

Um problema com muitas alegações feitas pelo reducionismo materialista, então, é que eles repousam em um conceito de relações parte-para-todo em substâncias materiais que é (na visão A-T) falsa ao longo de todo o tabuleiro, não meramente onde o relacionamento mente-cérebro está relacionado. É falso dizer que uma árvore "nada mais é" que uma coleção de raízes, tronco, folhas, seiva, etc., mesmo que uma árvore, é claro, tenha estas partes. É falso dizer que um triângulo "nada mais é" que as partículas de tintas que fazem suas linhas, que uma palavra "nada mais é" que as marcas materiais que compreendem seus símbolos, ou que uma pintura "nada mais é" que as pinceladas de cor que o pintor colocou na tela, ainda que estes objetos também tenham as partes em questão. E é falso dizer que a mente "nada mais é" que uma coleção de processos neurais, mesmo que processos neurais de fato estejam por baixo de todas as nossas atividades neurais. (Você não precisa ser um teorista A-T para ver isto, a propósito. Veja M. R. Bennett e P. M. S. Hacker, Philosophical Foundations of Neuroscience para uma cuidadosa crítica deste conceitualmente descuidado e falacioso pensamento que permeia muita da discussão filosófica e "científica" sobre o cérebro.)

Agora, desde que A-T está comprometido com um tipo de dualismo, apesar de ser de variedade hilemórfica – e portanto, mantém que operações intelectuais não tem órgão corporal – pode parecer surpreendente que eu deva dizer que "processos neurais de fato estão por baixo de todas as nossas atividades mentais". Mas é exatamente isto o que de fato o dualista hilemórfico afirma. A razão é esta. Mantenha em mente primeiro de tudo que tudo que A-T trata sensação e imaginação – aqueles fenômenos "mentais" que temos em comum com outros animais inferiores, e que são caracterizadas pelo que filósofos contemporâneos chamam "qualia" – como corporal ou física em natureza, em certo sentido inteiramente material. Para se certificar, A-T tem uma concepção de matéria diferente da que os materialistas têm. Por exemplo, A-T não mantém que as únicas propriedades da matéria são aquelas descritas pelo físico moderno. Mas o ponto relevante para os presentes propósitos é que A-T não trata sensação e imaginação per se como envolvendo alguma espécie de órgãos propriedades imateriais, tudo que sobrevive à morte do corpo, ou qualquer coisa que nos distinga de bestas.

O que nos distingue do bruto e implica imaterialidade é nosso entendimento de conceitos ou ideias universais. Uma razão pela qual pensamento conceitual não pode ser material é que conceitos e as ideias que os caracterizam são abstratas e universais, enquanto objetos e processos materiais não inerentemente concretos e particulares; outro é que conceitos e pensamentos que os caracterizam são (pelo menos algumas vezes) exatos, determinados e não-ambíguos, enquanto objetos e processos materiais são inerentemente inexatos, indeterminados e ambíguos quando eles são associados com o conteúdo conceitual afinal. Há outras razões também. (Estes são assuntos que eu abordei muitas vezes. para um tratamento mais detalhado, veja os capítulos seis e sete de Philosophy of Mind e, mais uma vez, o capítulo quatro de Aquinas. Alguns posts relevantes podem ser encontrados aqui e aqui. E veja também os artigos de James Ross, "Immaterial Aspects of Thought" e David Oderberg, "Concepts, Dualism, and the Human Intellect".)

Sendo no mais tudo igual, dado que a alma na qual o intelecto é um dos poderes é por sua natureza orientado para o corpo, no qual é a forma, o intelecto humano – ao contrário do intelecto dos anjos, que são semelhantes às substâncias imateriais cartesianas – requer atividade corporal como condição necessária para sua operação ordinária, ainda que não seja uma condição suficiente. Por um lado, ela requer que existam órgãos sensoriais para gerar as sensações a partir das quais "fantasmas" ou imagens mentais podem sor derivadas, a partir das quais por sua vez o intelecto pode abstrair conceitos. Mas também (e mais para o ponto presente) requer que existam órgãos capazes de gerar fantasmas ou imagens mesmo após a sensação ter cessado; quer dizer, ela requer os processos neurológicos por detrás da imaginação. Pois mesmo que nosso conceito de um triângulo (por exemplo) não é e nem pode ser identificado com qualquer imagem de um triângulo — tal imagem sempre terá características que faltam no conceito, estritamente se aplicará apenas a alguns tiângulos enquanto o conceito se aplica a todos, pode ser vago em certos aspectos, e assim por diante — não obstante somos incapazes de receber o conceito de um triângulo sem ao mesmo tempo formar alguma imagem de algum tipo (uma imagem mental de um triângulo, ou a observação ou o som da palavra "triângulo", ou o que seja).

Uma analogia útil seria a concepção de Frege sobre o relacionamento entre proposições e sentenças. Uma proposição não pode ser identificada com uma sentença; por exemplo, a proposição que a neve é branca não pode ser identificada com a sentença "A neve é branca", porque um falante de alemão em vez de português poderia expressar exatamente a mesma proposição usando a sentença "Schnee ist weiss". Porém, ela também não pode ser identificada com nenhuma outra sentença ou coleção de sentenças, desde que a proposição de que a neve é branca era verdadeira antes mesmo de qualquer linguagem vir a existir, e permaneceria verdadeira ainda que toda linguagem deixasse de existir. Resumindo, proposições não são entidades linguísticas. Tudo mais sendo igual, elas não podem ser assimiladas por nós exceto por meio de entidades linguísticas. A proposição que a neve é branca não é idêntica à "A neve é branca" ou "Schnee ist weiss", mas você não pode apreendê-la sem apreender qualquer uma dessas sentenças, ou uma sentença em alguma outra linguagem. Como Frege coloca em seu artigo "The Thought": "O pensamento, ele próprio imaterial, se reveste da vestimenta material de uma sentença e por meio disto se torna compreensível para nós". (Frege está usando "pensamento" aqui para referir-se a uma proposição, i.e. ao conteúdo de um "pensamento" no sentido mentalístico do termo.)

Agora, ao contrário de Frege, Aristóteles e Aquino não são realistas platonistas. Mas eles são realistas moderados, e afirmariam algo como o ponto básico de Frege. Não apenas as proposições que nós apreendemos tendo pensamentos, mas os pensamentos em si, são imateriais e distintos de quaisquer imagens visuais ou auditivas que nós pudéssemos formar de sentenças particulares. Mesmo assim nós achamos impossível apreender uma proposição, e portanto ter um pensamento, sem também formar ou imagens ou sentenças ou alguma outra imaginação. E na visão de Aristóteles e Aquino, toda imaginação é, como eu tenho dito, corpórea e portanto material. Como Aquino conclui no Livro I capítulo 2 de seu "Comentário ao De Anima de Aristóteles", "desde que não se pode ter uma imaginação sem ter um órgão material, parece claro que não pode haver operação intelectual sem a operação da matéria" (como traduzido por Robert Brennan na pg. 192 de sua Psicologia Tomista).

Portanto o teorista A-T afirma que sempre haverá algum correlato material à atividade normal do intelecto humano — não como uma concessão relutante forçada em uma teoria por causa do sucesso da neurociência, mas, pelo contrário, precisamente como a predição da posição A-T como ela tem sido entendida desde o princípio. Fossem Aristóteles e Aquino familiares com os tipos de descobertas neurocientíficas freneticamente cornetadas pelos materialistas como se elas devessem ser um abalo para o dualista, eles responderiam, dando de ombros: "Mas é claro. Eu bem que disse."

O que o A-T nega, novamente, é que e o nível neurológico de descrição, apesar de necessário, não pode nem mesmo bastar para abordar a atividade intelectual. Sempre haverá em princípio alguma degradação entre os fatos da neurociência e os fatos sobre o conteúdo de nossos pensamentos — algo que até mesmo materialistas como W. V. Quine e Donald Davidson afirmaram em bases filosóficas, e psicólogos como Kagan afirmaram com bases empíricas. Para o A-T, a principal razão, como eu tenho dito, tem a ver com o contraste entre o caráter determinado e universal do pensamento conceitual e a natureza particular e indeterminada do processo material — veja o artigo de Ross, anotado acima, para uma apresentação especialmente poderosa deste ponto.

Este, incidentalmente, é o porquê de um teorista A-T está despreocupado pela evidência neurocientífica pela possibilidade em princípio da "leitura de mentes", que geralmente ganha atenção na mídia popular. Invariavelmente, nós somos informados que pelo menos certos tipos de estados mentais podem ser lidos da evidência neurológica com um grau de exatidão que é ao mesmo tempo surpreendente alto e consideravelmente menos que absoluto. Para o A-T, é exatamente isto que deve ser esperado. Se um "fantasma" ou imagem é material, tal que nós podemos em princípio determinar neurologicamente que você está apreendendo tais e tais fantasmas, então as circunstâncias sob as quais você está fazendo isto podem fazer provável que você também esteja apreendendo pensamentos da espécie tipicamente associado com tais fantasmas. Mas probabilidade é o máximo que se pode obter dada a degradação entre os fantasmas ou a imaginação por um lado, e o conteúdo conceitual do outro — especialmente quando o conteúdo conceitual abstrai consideravelmente de qualquer coisa que possamos imaginar, assim como ocorre quando estamos pensando sobre coisas por demais removidas do que podemos diretamente experimentar.

O fato é que o dualismo hilemórfico aristotelista-tomista é a teoria mais claramente consistente com toda a evidência filosófica e neurocientífica. Dualismo cartesiano não é refutado por tal evidência, mas tem que recorrer a medidas indiscutivelmente ad hoc a fim de evitar certas dificuldades (o problema da interação, o fato que certas vezes estamos totalmente inconscientes, e por aí vai). E não existe absolutamente nada na evidência neurocientífica para apoiar versões redutivas do materialismo contra o dualismo de propriedades ou o A-T. Em argumentos para o preferido reducionismo materialista destas alternativas dualistas, todo o trabalho é feito por suposições metafísicas e metodológicas em vez da evidência empírica — por apelos espúrios à Navalha de Ockham, digamos, ou à ilusão que "tudo mais foi explicado em termos materialistas". (Eu digo que o apelo à navalha de Ockham neste contexto é espúrio, porque os principais argumentos para o dualismo não são "hipóteses explanatórias" probabilísticas para as quais considerações de parcimônia são irrelevantes; elas são, de fato, tentativas de uma demonstração estritamente metafísica. Veja os posts de Churchland anexados acima para mais sobre o assunto. E eu digo que a alegação que "tudo mais foi explicado em termos materialistas" é uma ilusão por razões estabelecidas aqui, aqui e aqui, e em posts sobre Jackson e Chomsky anexados acima.)

É claro, dualistas de propriedade, como os teoristas A-T, percebem que os níveis mental e neurológico de descrição são muito mais próximos que os dualistas cartesianos supõem; enquanto materialistas não-redutivos como Davidson ao menos percebem que eles não são tão próximos como materialistas redutivos supõem. Mas cada uma das duas visões ainda sofre dos análogos dos problemas que encaram as mais extremas versões do dualismo e do materialismo. Por exemplo, eles ambos enfrentam o problema do epifenomenalismo, que segue de sua insistência mecanicista comum que toda causação seja entendida no modelo de causação eficiente. Dualismo hilemórfico é o verdadeiro meio entre os extremos, uma visão que tem as vantagens das outras sem as suas dificuldades.

Então por que suas virtudes não são reconhecidas mais abrangentemente? As razões usuais: Há, primeiro, a falta de familiaridade da média acadêmica da filosofia contemporânea com o que os antigos e medievais realmente pensavam. Segundo, existe uma posição dogmática ideológica que a revolução mecanicista moderna anterior — sua negação das causas formais e finais aristotélicas — tem ocupado na vida intelectual moderna, apoiado pelo totalmente desmerecido prestígio que esta revolução tem herdado do sucesso da ciência empírica. (Para detalhes, leia The Last Superstition.) E terceiro, existe o igualmente dogmático e ideológico naturalismo que se sustenta nas costas dos primeiros dois fatores. Como Burge escrevera em outro contexto:

A torrente de projetos nas últimas duas décadas que tentam encaixar causação mental ou ontologia mental em uma 'figura naturalística do mundo' me atinge como tendo mais em comum com ideologia política ou religiosa do que com uma filosofia que mantém a perspectivana diferença entre o que é conhecido e o que é especulado. Materialismo não é estabelecido, ou muito menos suportado, pela ciência. ("Mind-Body Causation and Explanatory Practice," in John Heil and Alfred Mele, eds., Mental Causation, na pg. 117)

1 META

Table 1: META
Título Original Against Neurobabble
Autor Edward Feser
Link Original https://edwardfeser.blogspot.com/2011/01/against-neurobabble.html
Link Arquivado https://archive.fo/wtroY

Created: 2019-02-04 seg 23:57

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Moralidade depende de Deus? [Edward Feser]

Moralidade depende de Deus? (Atualizado)

Moralidade depende de Deus? (Atualizado)

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Não da maneira que muitos pensam. Um leitor pediu-me para comentar neste post de Trent Dougherty no Prosblogion. Dougherty nota que se alguém aceita o essencialismo aristotelista, parece seguir daí que ele deve permitir que moralidade possa ter um fundamento, ainda que não exista um Deus. Pois de um ponto aristotelista de vista, o que é bom para o ser humano, e portanto como devemos tratar os seres humanos, é determinado pela natureza humana, e a natureza humana é o que é, existindo ou não um Deus. Bem, eu penso que Dougherty está mais ou menos certo sobre isto, apesar de que eu qualificaria o que ele disse de maneiras que eu explicarei presentemente. E como eu argumentara em outro lugar (p. ex. em The Last Superstition), não é o ateísmo per se que ameaça a possibilidade de moralidade, pelo menos não diretamente. Em vez disso, o que a ameaça é concepção mecanística ou anti-teleológica (e portanto anti-aristotelista) de mundo natural que ateus modernos geralmente estão comprometidos com, e que eles (falsamente) assumem ter sido estabelecida pela ciência moderna.

Mantenha em mente que de u ponto de vista aristotelista, teleologia ou causalidade final é imanente à ordem natural de uma maneira que não é imanente a artefatos, da maneira explicada em meu recente post sobre natureza VS arte. Para tomar um exemplo daquele post, uma rede feita de cipós de trepadeira não tem sua função de rede inerentemente, mas apenas relativa ao artífice que a impõe externamente. Os cipós por si só, em contraste, têm suas tendências de cipó inerentemente, apenas pela virtude de serem cipós. As tendências de cipó seguem de sua natureza ou forma substancial, enquanto as tendências de rede não são, mas resultam de um mero arranjo acidental (no sentido técnico aristotelista de "acidental"). E então o que é bom para uma trepadeira – isto quer dizer, o que constitui seu florescimento como o tipo de coisa viva que é (tomar água e nutrientes, exibir tal e tal padrão de crescimento, etc.) – é determinado pelos fins que seguem de sua natureza ou forma substancial.

Agora, teoria da lei natural como entendida pela tradição aristotelista-tomista (A-T) pressupõe este entendimento de objetos naturais. Seres humanos, como qualquer outra substância natural, têm uma forma ou natureza substancial, e o que é bom para eles — o que constitui seu florescer — é determinado pelos fins ou causas finais que seguem de ter tal tipo de natureza ou forma substancial. Mas assim como nós determinamos as causas eficientes das coisas sem fazer referência a Deus, assim também nós podemos normalmente determinar as causas finais das coisas sem fazer referência a Deus. E portanto, bem como quando podemos fazer estudo da Física, Química, e semelhantes sem fazer referência a Deus, assim também fazer Ética sem fazer referência a Deus, pelo menos em uma grande extensão. Pois nós podemos conhecer o que é bom para uma coisa se pudermos conhecer sua natureza, e podemos conhecer sua natureza por investigação empírica guiada por uma metafísica consistente (A-T). Pelo menos em uma grande extensão, então, nós podemos saber o que a lei natural diz apenas pelo estudo da natureza humana e à parte de qualquer espécie de revelação divina. É por isso que é uma lei natural. Bondade, ou pelo menos a sua possibilidade, é justamente natural para nós (como Philippa Foot poderia dizer).

Agora obviamente, seres humanos, cipós de trepadeira, e tudo mais não pode, de um ponto de vista A-T, existir mesmo por um instante a não ser que Deus as conserve em existência. Eles também não teriam o poder causal que têm mesmo por um instante se Deus como primeira causa não lhes transmitisse tal poder causal a todo momento. Tudo isto é (eu diria) o que as versões A-T do argumento cosmológico, corretamente entendidas, estabelecem. Semelhantemente, seres humanos, cipós de trepadeira, e outros fenômenos naturais não podem manifestar a teleologia ou causalidade final que eles têm ainda que por um instante Deus não estivesse continuamente "dirigindo-os" para seus fins. Isto é (eu diria) o que a Quinta Via, se corretamente entendida, estabelece. Mas bem como as versões A-T do argumento cosmológico não acarretam que objetos naturais não tenham real poder causal, assim também a Quinta Via não acarreta que objetos naturais não tenham teleologia inerente. Para usar o jargão metafísico tradicional, a realidade das "causas secundárias" é perfeitamente compatível com a ideia A-T que todas as causas naturais devem ultimamente a todo momento derivam seu poder causal de Deus; A-T rejeita firmemente o ocasionalismo. Semelhantemente, a realidade da teleologia imanente ou "embutida" como Aristóteles a entendia é perfeitamente compatível com a ideia de que toda teleologia ultimamente deriva de Deus.

"Ultimamente" é a palavra chave aqui. É porque causas secundárias são reais que a ciência é possível. Quando estudamos o mundo físico, estamos estudando como as coisas físicas em si mesmas comportam-se dada sua natureza, não os atos caprichosos de Deus. E é porque teleologia imanente é real que lei natural é possível. Quando estudamos ética, estamos estudando o que é bom para seres humanos dada sua natureza, não comandos divinos caprichosos. Ultimamente os fatos estudados pela ciência e os fatos estudados pela ética dependem de Deus, porque tudo depende, a cada instante, de Deus. Neste sentido, ciência, ética, e tudo o mais depende de Deus. Mas proximamente ética pode ser feita pelo menos em uma grande extensão sem fazer referência a Deus, bem como ciência natural pode. Neste sentido, muitas verdades morais ainda seriam verdadeiras se, per impossível, não houvesse Deus — da mesma forma que a tabela periódica de elementos químicos seria o que é mesmo se, per impossível, não existisse Deus. (Tudo isso é discutido no capítulo cinco de Aquinas. E veja a primeira metade deste artigo para um rascunho da teoria da lei natural A-T.)

Agora isto não significa que Deus é irrelevante para ética; longe disso. Por uma coisa, apenas parte da lei natural pode se conhecida sem referência a Deus. Por exemplo, que assassinato, mentira, adultério, desonrar os pais, etc. são contrários ao bem para nós pode ser conhecido a partir de um exame da natureza humana, simplesmente. Mas o fato que Deus existe naturalmente tem implicações morais por si só, e desde que para A-T a existência de Deus pode também ser conhecida mediante razão natural, existem certas obrigações religiosas bastante gerais (bem como a obrigação de amar Deus) que podem ser conhecidas mediante razão simplesmente, e portanto formam parte da lei natural. (De fato, estas são nossas maiores obrigações debaixo da lei natural.) Então há o fato que as naturezas das coisas, incluindo natureza humana, derivam ultimamente daquelas ideias no intelecto divino que formam os arquétipos com referência aos quais Deus cria. (Desta maneira moralidade não é para o A-T nem independente de Deus e nem baseada em arbitrários comandos divinos, como expliquei num post sobre a objeção de Eutífron.) Adicionalmente, para A-T, uma abordagem completa da obrigação moral requer referência a Deus como legislador (mesmo se obrigação moral possa proximamente ser explicada com referência ao fim natural da vontade). Finalmente, revelação divina é também necessária para uma abordagem completa da vida moral diária. Por um lado, revelação divina expõe determinados detalhes acerca da moralidade que o intelecto humano é fraco demais para descobrir confiavelmente por si só. Por outro lado, alguns aspectos da lei natural são tão requisitadas que muitas pessoas são realisticamente aptas de viver neles somente se for dada a esperança de recompensa no além-túmulo, ou algum tipo de promessas por revelação divina. (Novamente, todas essas questões são discutidas em Aquinas. Veja o capítulo 8 do primeiro volume de The Science of Ethics de Michael Cronin, para um tratamento útil sobre das bases próxima e definitiva da obrigação moral.)

Apesar disso, desde que em uma grande extensão os fundamentos e conteúdo da moralidade podem ser conhecidos a partir de um estudo da natureza humana, segue que em uma grande extensão moralidade poderia ser como ela é ainda que serres humanos existissem e Deus não. Pois, novamente, moralidade não é é baseada em comandos divinos arbitrários mais que leis científicas são expressões de algum desejo divino arbitrário. Do ponto de vista A-T, "teoria dos comandos divinos" (ou pelo menos a versão tosca da teoria dos comandos divinos que toma as fundações e o conteúdo da moralidade como repousando no absoluto fiat divino) é, diria eu, comparável ao ocasionalismo, e semelhantemente objetável. (Cf. meu recente post sobre Ockham.)

Como eu disse, então, ateísmo per se não é uma ameaça direta à possibilidade própria da moralidade. Alguém que negue a existência de Deus mas aceite o essencialismo aristotélico pode ter bases para aceitar pelo menos parte da lei natural. Assim alguém também poderia endossar uma forma ateísta de platonismo (se é que existe esta coisa). Mas optar por uma visão completamente anti-essencialista e anti-teleológica do mundo — uma que mantém que a ordem natural é inteiramente mecânica e não existe nada além desta ordem — seria, o filósofo A-T argumentaria, minar a possibilidade de qualquer espécie de moralidade afinal. Pois isto remove inteiramente do mundo essências e causas finais, e portanto a possibilidade de fazer sentido do bem como uma característica objetiva da realidade. (Veja The Last Superstition para detalhes.) E desde que o ateísmo moderno tende a definir-se em termos de tal visão radicalmente anti-teleológica ou mecanicista do mundo, ele também é nesta medida incompatível com qualquer possível moralidade.

UPDATE: Frank Beckwitt comenta sobre Dougherty aqui.

1 META

Table 1: META
Título Original Does morality depend on God? (Updated)
Autor Edward Feser
Link Original https://edwardfeser.blogspot.com/2011/07/does-morality-depend-on-god.html
Link Arquivado https://archive.fo/4vKAY

Created: 2019-02-04 seg 22:25

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