domingo, 15 de janeiro de 2017

Deus, Obrigação e o Dilema de Eutífron [Edward Feser]

Deus, Obrigação e o Dilema de Eutífron

Deus, Obrigação e o Dilema de Eutífron

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Deus tem obrigações conosco? Não, Ele não tem. Mas isto não implica que Ele possa fazer qualquer coisa conosco? Não, não implica. Mas como pode ser? Para ver como, considere primeiro outro falso dilema correlato: o famoso Problema de Eutífron.

O dilema de Eutífron é como se segue: Deus nos comanda a fazer aquilo que é bom. Mas alguma coisa é boa simplesmente porque Deus a comanda, ou Ele a comanda porque já é boa? Se tomarmos a primeira opção, então parece que estamos comprometidos com a possibilidade de que Deus possa fazer com que seja bom para nós torturar bebês apenas por prazer, simplesmente comandando isto. Se tomarmos a segunda opção, então parece que estamos comprometidos com dizer que existe um padrão de bondade independente de Deus, ao qual Ele se refere a nós quando Ele comanda. Nenhuma das opções parece boa para o ponto de vista do teísmo. A primeira torna a moralidade arbitrária, e a afirmação que Deus é bom se torna completamente trivial. A segunda conflita com as afirmações nucleares do teísmo que Deus é a causa fundamental de todas as coisas, e em particular a fonte de toda bondade. Então, temos um problema, correto?

Na realidade, não temos, porque o dilema é falso – certamente do ponto de vista do tomismo, por razões que eu explico em Aquinas. Como com todas as supostamente grandes e malvadas objeções ao teísmo, esta repousa numa caricatura, e numa falha em fazer as distinções cruciais. Primeiramente, precisamos distinguir o assunto do conteúdo das obrigações morais do assunto do que as dá sua força de obrigação. Comando divino é relevante para o segundo assunto, mas não para o primeiro. Segundo, é um erro pensar que anexar moralidade de qualquer jeito aos comandos divinos deve fazê-la de tal extensão arbitrária, um produto do caprichoso fiat divino. Pode ser de tal forma que pensarmos nos comandos divinos em termos do nominalismo e voluntarismo de Ockham, mas não se, seguindo Aquino, mantivermos que a vontade segue após o intelecto, tal que Deus sempre aja de acordo com a razão. Terceiro, não acarreta que o que determina o conteúdo da moralidade e a razão de Deus para comandar o que Ele comanda é de qualquer maneira independente dEle.

A situação real então é esta. O que é bom ou ruim para nós é determinado pelos fins estabelecidos por nós pela nossa natureza, e dada a metafísica essencialista a qual Aquino estava comprometido, isto significa que existem certas coisas que são boas ou más para nós absolutamente, as quais sequer Deus poderia mudar (já que o poder de Deus não se estende a fazer o que é auto-contraditório). Agora Deus, dada a perfeição de Seu intelecto, pode em princípio apenas ordenar de acordo com a razão, e portanto Deus não pode jamais nos comandar fazer o que é mau para nós. Portanto o primeiro chifre do dilema é neutralizado: Deus não pode jamais nos comandar torturar bebês por diversão, porque torturar bebês por diversão é o tipo de coisa que, dada nossa natureza, não pode jamais em princípio ser boa para nós. Mas as essências que determinam os fins das coisas – nossos fins, e para que importância o fim da razão também como inerentemente dirigida para o verdadeiro e o bom – não existe independentemente de Deus. Em vez disso, dado o entendimento realista escolástico de universais, elas preexistem no intelecto divino como ideias ou arquétipos por referência aos quais Deus cria. Portanto, o segundo chifre do Dilema de Eutífron também é neutralizado.

Mantenha em mente que, como eu notei em meu post sobre o "desafio do deus maléfico" de Law, a metafísica por detrás dos argumentos do teísmo clássico leva à ‌conclusão que Deus não é uma coisa boa entre outras mas de fato é a própria Bondade. Dada a simplicidade divina, isto significa que o que nós pensamos como a bondade distintiva dum ser humano, a bondade distintiva duma árvore, bondade distintiva dum peixe, e por aí vai – cada uma associada com uma essência distinta – todas existem de uma maneira indiferenciada na Bondade que é Deus. Como coloquei num post anterior, "na criação, o que é ilimitado e perfeito em Deus vem à existência de uma maneira limitada e imperfeita na ordem natural … As ideias divinas de acordo com as quais Deus cria são portanto para serem compreendidas como o alcance do intelecto divino sobre as diversas maneiras nas quais a essência divina pode ser imitada de uma maneira limitada e imperfeita pelas coisas criadas".

Simplicidade divina também acarreta, é claro, que a vontade de Deus é justamente a bondade de Deus que justamente é Sua imutável e necessária existência. Isto significa que o que é objetivamente bom e o que Deus quer para nós como moralmente obrigatório são realmente a mesma coisa considerada sob diferentes descrições, e que não podem ter sido de outra maneira diferente da que elas são. Não existe questão então, ou se Deus arbitrariamente comanda algo diferente para nós (torturar bebês por diversão, ou o que seja) ou se existe um padrão de bondade à parte dEle. Novamente, o Dilema de Eutífron é falso; a terceira opção que ele falha em considerar é que aquilo que é moralmente obrigatório é o que Deus comanda de acordo com um padrão não mutável e não arbitrário de bondade que não é independente dEle. (Como Eleonore Stump aponta em seu livro sobre Aquino, seu papel em resolver o Dilema de Eutífron é uma razão pela qual teístas deveriam tomar seriamente a doutrina de Aquino sobre a simplicidade divina.)

Agora, retornemos à questão se Deus tem ou não obrigações para conosco. Ser obrigado é ser sujeito a uma lei, onde, como Aquino afirma, "uma lei é imposta sobre outros a propósito de regra e medida" (ST I-II.90.4). Além disso, "a lei deve observar principalmente o relacionamento para a felicidade", quer dizer, a realização do que é bom para aqueles debaixo dela (ST I-II.90.2). Mas Deus não tem superior que imponha qualquer lei ou obrigação a Ele, não existe bem que Ele precisa realizar desde que Ele já é a própria Bondade e já possui suprema Beatitude, e de acordo não existe regra ou medida fora dEle contra a qual Suas ações possam ser avaliadas. Ele não está sob controle da lei moral precisamente porque Ele É a lei moral. "Tudo que está nas coisas criadas por Deus, seja contingente ou necessário, é sujeito à lei eterna: enquanto coisas pertencentes à Divina Natureza ou Essência não são sujeitas à lei eterna, mas são a própria lei "(ST I-II.93.4, ênfase acrescida).

Mas entender o que isto significa é justamente entender que Deus só possa querer o que é bom para nós. Pois, como notado acima, Deus só pode querer de acordo com a razão, e seria perverso e irracional querer criar alguma coisa sem querer o que é por sua natureza bom para tal coisa. Se "a natureza nada faz em vão" (Aristóteles, De Anima III.9 432b21), então nem Deus, o Autor da natureza. Ele permite o mal, mas somente porque Ele pode trazer algo bom dele (ST I.2.3). Portanto, Aquino diz "Enquanto `pertence ao melhor produzir o melhor’, não cabe que na suprema bondade de Deus deva produzir coisas sem dar a elas sua perfeição. Agora a perfeição fundamental de uma coisa consiste na realização de seu fim. Portanto pertence à Divina bondade, dado que ela traz coisas à existência, assim então levá-las ao seu fim"(ST I.103.1).

Desta forma, Deus nos ama e nos ama perfeitamente, poque amar é querer o bem do outro, e Deus não pode falhar em querer o que é bom para nós. Desde que bondade moral concerne a vontade, segue que Deus é moralmente bom, e perfeitamente. Mas Sua bondade moral não é como a nossa, desde que não envolve cumprir obrigações, adquirir virtudes, ou coisas do tipo. Contrário ao que alguns teístas personalistas parecem pensar, isto não faz Sua bondade moral de alguma forma inferior à nossa. Isto a faz infinitamente superior.

1 META

Table 1: META
Título Original God, obligation, and the Euthyphro dilemma
Autor Edward Feser
Link Original http://edwardfeser.blogspot.com/2010/10/god-obligation-and-euthyphro-dilemma.html
Link Arquivado http://archive.is/eZTD6

Created: 2019-02-04 seg 22:02

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