sábado, 23 de dezembro de 2017

A Catastrófica Aranha [Edward Feser]

A Catastrófica Aranha

A Catastrófica Aranha

Immanuel Kant, este grande destruidor no reino do pensamento, excedeu Maximilian Robespierre em terrorismo

  • Heinrich Heine, Concerning the History of Religion and Philosophy in Germany

Kant ... Aquela aranha catastrófica ...

  • Friedrich Nietzsche, The Antichrist

Tomada como um todo, a influência kantiana no cristianismo moderno é tão profunda e pervasiva que eu creio que faz sentido falarmos de três grandes períodos da teologia cristã, cada um associado a um filósofo dominante. (1) O primeiro período é o cristianismo platônico ou neoplatônico dos primeiros pais da igreja; (2) O segundo é o cristianismo aristotélico da teologia escolástica ou medieval; (3) E o terceiro é o cristianismo kantiano da era moderna ...

Da forma que eu vejo, a validade da nova síntese depende inteiramente de uma questão: a capacidade de controlar Kant, de manter 'Kant na caixinha', por assim dizer. Afinal o kantismo puro é incompatível com o cristianismo ... Se uma concepção kantiana de autonomia prevalece, então Deus torna-se servo de um humanismo moderno e a síntese é inválida.

  • Robert P. Kraynak, Christian Faith and Modern Democracy

Como notei no meu post mais recente sobre Deus e obrigação [L01], de um ponto de vista aristotélico-tomista, Deus só pode desejar de acordo com a razão e portanto, dado que a razão é por sua natureza direcionada para o bem, ele só pode desejar o que é bom. Mas Ele o faz não em obediência a uma lei fora de Si Mesmo, mas de acordo com Sua própria natureza. Afinal Ele não "tem" racionalidade ou bondade; em vez disso, Ele é Seu infinito Intelecto, Ele é a perfeita Bondade. Para usar a linguagem central à ética de Kant, você pode dizer que Ele é "autônomo", que ele é um "auto-legislador" -- que Ele não segue lei salvo o que é ditado pela Sua própria natureza racional.

Mas, é claro, o próprio Kant aplica este conceito a nós. Nós devemos, em sua visão, sermos "autônomos" se é para servos verdadeiramente livres -- não sem-lei, para não ter dúvidas, mas também não "heterônomos", não limitados por uma lei externa a nós. Em vez disso, devemos ser "auto-legisladores", atrelados apelas por uma lei que de alguma forma é de nosso próprio entendimento. Kant também famosamente descreve-nos como "fins em nós mesmos", e afirma que uma verdadeira comunidade moral é aquela na qual os membros lutam para criar um "reino de fins", uma ordem na qual todos são tratados como fins auto-legisladores em si mesmos.

Estas ideias têm sido enormemente influentes. Elas formaram o liberalismo igualitário de John Rawls, o libertarianismo de Robert Nozick, e até mesmo o conservadorismo de Roger Scruton. Como Kraynak enfatiza, elas também têm permeado o pensamento católico e protestante atual. Pessoas modernas de todas as vertentes políticas e religiosas têm passado a ver "respeito pelas pessoas", "direitos humanos", "dignidade humana", "liberdade" e coisas do gênero -- em vez de, digamos, submissão à lei natural ou à vontade de Deus - como categorias fundamentais em termos das quais abordar questões morais e políticas. Até aqui, "todos somos kantianos agora".

Mas de um ponto de vista cristão tradicional, e de um ponto de vista tomista, existe algo mais que um tanto blasfemo nisso tudo. Para a teoria clássica da lei natural - o tipo que embasa a moralidade na natureza humana como entendida nos termos de uma metafísica essencialista clássica (platônica, aristotélica ou escolástica) - é difícil ver como seres humanos podem inteligivelmente ser descritos como "auto-legisladores" ou "autônomos". Em nenhum sentido somos a fonte da natureza que determina nossos fins, incluindo o fim da própria razão; somente Deus é assim. Portanto a natureza, e ultimamente Deus - em vez da razão individual do agente moral - são o que embasa o conteúdo e força obrigatória da lei moral. Como diz Aquino:

Desta forma o próprio Deus é a medida de todas as coisas ... Portanto Seu intelecto é a medida de todo o conhecimento; e, para falar mais ao ponto, Sua boa vontade, de toda boa vontade. Toda boa vontade é boa em razão de ser voltada para a divina boa vontade. De acordo, desde que todos são obrigados a ter uma boa vontade, ele é similarmente obrigado a ter uma vontade conformada à divina vontade. (QDV 23.7)

Ou como Alguém certa vez disse, "Mas que seja feita a tua vontade e não a minha". Se isto é heteronomia, pior para a autonomia kantiana.

O dizer "fins em si mesmos" não é menos suspeito. Aquino explicitamente considera a questão de se "o próprio homem é seu próprio fim último", e responde que "o fim último do homem é algo fora dele, a saber, Deus" (ST I-II.3.5) dado que "todas as coisas são ordenadas para um bem como seu fim, e este é Deus" (SCG III.17.6, ênfase adicionada). Dada a metafísica por detrás da teoria clássica da lei natural, descrever o homem como "fim em si mesmo" é, como a ideia do homem como "auto-legislador", simplesmente ininteligível. É claro que esta mesma metafísica informa a concepção teísta clássica de Deus que recentemente temos explorado em uma série de posts, e é precisamente o que faz com que tal fala seja inteligível quando aplicada a Deus, e a Deus somente.

Portanto, o abandono desta metafísica resultou não apenas em uma antropomorfização de Deus, trazendo-O para mais perto do nível humano - a reclamação teísta clássica contra o personalismo teísta [L02] - mas também em uma deificação do homem, elevando-o ao nível de Deus. Pessoas modernas gostam de pensar que o primeiro dos Dez Mandamentos é aquele que ninguém mais quebra; afinal, qual a última vez que você viu alguém curvar-se a um ídolo? Mas estamos mais cegos para os pecados que mais nos submetemos. Idolatria é o pecado definidor da modernidade, e é pior por ser dirigida ao homem. Ao menos o antigo pagão sabia o suficiente para adorar algo superior a si mesmo.

Posr esta razão é um erro grave pensar que o único problema com a conversa de "auto-legislador" e de "fins em si mesmos" é que, ausente o tipo de padrões morais eram tidos por garantidos nos tempos do próprio Kant, ela tem uma tendência em degenerar em tum tipo de libertinismo. Se você honra os pais, não mata, não comete adultério, não rouba, não mente e não inveja, faz bem. Você terá cumprido o que Cristo chamou de segundo mandamento - amar o vizinho. Mas você não terá cumprido o primeiro e maior - amar Deus acima de todas as coisas. E se a razão pela qual você honra o segundo é precisamente honrar o homem como fim em si mesmo, você está em perigo de violar o primeiro e maior. O próprio Kant, claramente, era um homem bastante austero; ele ficaria absolutamente horrificado pelo quanto os liberais e libertários agora defendem em nome da "autonomia". De acordo, o pecado original do kantismo não é o aborto, a fornicação, o uso de drogas ou algo do tipo. É, em vez disso, a codificação da blasfema auto-obsessão do homem, a elevação do "é tudo sobre mim" a um princípio moral. E a blasfêmia é apenas aumentada, não diminuída, se a única razão pela qual o blasfemo refreia-se dos pecados em questão é que ele pensa que eles são incompatíveis com seu patológico egocentrismo.

Para deixar claro, eu não estou dizendo que qualquer um que use a linguagem kantiana é culpado de blasfêmia. Como Kraynak enfatiza, pensadores cristãos que têm feito uso dela geralmente a transformam no processo, a fim de torná-la compatível com a teologia cristã e a lei natural. Mas Kraynak também é afiado em enfatizar, muito corretamente em minha opinião, que a ênfase que cristãos modernos colocam nas categorias morais kantianas é insensata. No máximo, é pouca coisa mais que um truque de marketing, uma tentativa de "vender" a moralidade tradicional a cidadãos das sociedades modernas secularizadas mostrando-lhes que ela segue de premissas as quais eles já estão comprometidos. E isso dificilmente funciona, se é que funciona, porque liberais seculares modernos estão bastante cientes de que cristãos ortodoxos e tradicionalistas não interpretam as premissas em questão da mesma forma que eles. Entoar "dignidade humana" e "respeito pelas pessoas" como mantras não vai convencer ninguém que já não concorde com você a opor-se a aborto, eutanásia, pornografia, e tudo o mais, precisamente porque dignidade humana e respeito pelas pessoas são conceitos altamente contestados. O que você precisa fazer é mostrar exatamente como as práticas em questão são incompatíveis com a dignidade humana, e isto implica (eu argumentaria) adentrar precisamente no tipo de considerações da lei natural clássica que se esperava ser capaz de evitar. Mas aí a entoada de "dignidade humana" e "respeito pelas pessoas" acaba tornando-se fútil.

No pior caso, o uso de categorias kantianas pode distorcer seriamente nosso entendimento do que a lei natural e o ensino cristão realmente implicam, mesmo quando aplicados por pensadores de outra forma tradicionais. Para tomar apenas um exemplo, teóricos da "nova lei natural", que têm a reputação de defender a moralidade sexual tradicional e opor-se ao aborto e à eutanásia, nos anos recentes também tenderam à visão de que a pena capital é injusta mesmo em princípio. Isto não apenas vai além de qualquer coisa que a Igreja Católica tenha ensinado, mas (como argumentei em outros lugares [L03]) é simplesmente incompatível com o catolicismo e a teoria clássica da lei natural. Mas (como eu também argumentei na peça apontada) isto também não é inteiramente surpreendente que eles tenham chegado a tal conclusão dado que, a exemplo de Kant, eles esquivam-se de qualquer apelo à natureza humana como entendida em termos da metafísica essencialista e em vez disso embasam suas posições em uma teoria da razão prática que coloca os fins do próprio agente moral (em vez dos fins estabelecidos por nós pela natureza ou pela vontade divina) no assento do motorista.

Nietzsche famosamente caracterizou Kant como uma "aranha catastrófica" porque ele o tomou como tendo influenciado uma moralidade essencialmente cristã na tradição filosófica secular alemã. A verdade é que ele insinuou uma moralidade essencialmente não cristã na tradição cristã, e na civilização ocidental como um todo. Em vez de apropriar de seu trabalho, conservadores e cristãos deveriam lutar para desfazê-lo. Kraynak tem razão, precisamos manter Kant numa caixa. Uma de pinho, com uma estaca no peito.


Notas e Links

[L01]http://edwardfeser.blogspot.com/2010/10/god-obligation-and-euthyphro-dilemma.html Já foi devidamente traduzido por aqui: http://carpinteirouniverso.blogspot.com.br/2017/01/deus-obrigacao-e-o-dilema-de-eutifron.html
[L02]http://edwardfeser.blogspot.com/2010/09/classical-theism.html
[L03]http://web.archive.org/web/20071014120117/rightreason.ektopos.com/archives/2005/12/catholicism_con.html

META
Autor Edward Feser
Link Original http://edwardfeser.blogspot.com.br/2010/10/catastrophic-spider.html
Link Arquivado http://archive.is/3k3Mk

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