domingo, 11 de novembro de 2018

"Pondo a Natureza no Pelourinho" [Edward Feser]

Pondo a Natureza no Pelourinho

Pondo a Natureza no Pelourinho

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O que é que distingue o método científico inaugurado por Bacon, Galileu, Descartes & CIA. da ciência dos medievais? Uma resposta comum é que os modernos exigiam evidência empírica, ao passo que os medievais se contentavam com apelos à autoridade de Aristóteles. A famosa história sobre os críticos escolásticos de Galileu recusando-se a olhar pelo telescópio supostamente serve para ilustrar esta diferença de atitudes.

O problema com esta resposta, é claro, é que ela é falsa. Por um lado, a história do telescópio é (assim como muitas outras coisas que todo mundo "sabe" sobre os escolásticos e o caso Galileu) uma lenda. Por outro, parte da razão pela qual a posição de Galileu encontrou resistência foi precisamente porque existe um tanto de questões no qual esta posição parecia conflitar com a evidência empírica. (Por exemplo, a teoria copernicana predizia que Vênus deveria em certos momentos aparecer com seis vezes o tamanho que apareceria outras vezes, mas inicialmente a evidência empírica parecia não confirmar isto, até serem desenvolvidos telescópios que podiam detectar a diferença; a paralaxe estelar prevista não recebeu confirmação empírica por um longo tempo; e assim por diante.)

Em seguida há o fato que os medievais simplesmente não eram de forma alguma hostis à ideia de que a evidência empírica é a fundação do conhecimento; pelo contrário, era um slogan escolástico padrão o "não há nada no intelecto que não haja primeiro no sentidos". De fato, Bacon considerava seus predecessores escolásticos como se algo por demais ávidos em acreditar na evidência dos sentidos. O primeiro dos "Ídolos da Mente" que ele famosamente critica, a saber os "Ídolos da Tribo", incluía uma tendência em tomar os vereditos da experiência sensória como fato. Na visão de Bacon, os sentidos podem ser enganados com muita facilidade, e precisam ser corrigidos controlando cuidadosamente as condições de observação e desenvolvendo instrumentos científicos. E em geral os primeiros modernos tratavam muito do que os sentidos nos dizem sobre o mundo natural – tais como o que eles nos dizem sobre qualidades secundárias como cor e temperatura - como falsos.

Então, simplesmente não é o caso que a diferença entre os medievais e os primeiros modernos era que estes últimos eram mais inclinados a confiar na evidência empírica. Pelo contrário, há um sentido em que este é precisamente o oposto da verdade.

Acerca do que interessa à evidência empírica, a real diferença, para hiper-simplificar, pode ser posta como se segue. Tanto os medievais quanto os modernos tratavam a experiência sensorial como testemunha crucial para a verdade acerca do mundo natural. Mas enquanto os medievais a tratavam mais ou menos como uma testemunha amigável, os modernos a tratavam mais ou menos como uma testemunha hostil. Você pode, de ambos os tipos de testemunha, derivar a verdade. Mas os métodos serão diferentes.

Consequentemente, uma testemunha amigável pode ser mais ou menos perguntada diretamente acerca da informação que você quer. Isto não significa que ela não precise eventualmente ser estimulada a responder. Mesmo que ela seja honesta, ela pode estar envergonhada ou relutante em divulgar algo embaraçoso, ou apenas não seja muito bem articulada. Isso também não significa que tudo que ela diz deve ser tomado em seu valor de face. Ela pode estar esquecida ou confusa ou apenas enganada agora e de novo. Uma testemunha hostil, em contraste, apesar de ter a informação que você quer, não pode ser perguntada diretamente com confiança. Mesmo que seja articulada, tenha uma memória perfeita, &c, ela pode simplesmente recusar-se a responder, ou pode persistentemente tergiversar, ou pode arrojadamente mentir séria e repetidamente. Portanto, ela pode ter que ser ludibriada para te entregar a informação que você quer, como o personagem de Jack Nicholson em Questão de Honra 1. Ou você pode ser tentado a ameaçá-la e espancá-la, como um daqueles tiras em Los Angeles - Cidade Proibida 2 faria. Então você pode pensar que o cientista aristotélico medieval tenha uma conversação com a natureza, o cientista baconiano moderno tortura 3 a natureza. Daí a notória fala baconiana sobre colocar a natureza no pelourinho, torturá-la para obter seus segredos &c.

Claro, isso é melodramático. E, para sermos justos, o próprio Bacon não parece ter posto as coisas dessa maneira comumente atribuída a ele (i.e. a parte acerca de tortura e pelourinho). No mais tudo igual, os medievais e modernos discordam sobre o grau no qual o mundo da experiência ordinária e o mundo que a ciência revela – o que Wilfrid Sellars chamou de "imagem manifesta" e "imagem científica" – correspondem. Para o aristotélico, a filosofia e a ciência estão largamente em harmonia com o senso comum e a experiência ordinária. Para esclarecer, eles vão a níveis mais profundos da realidade, e corrigem o senso comum e a experiência ordinária ao longo das arestas, mas não descartam completamente o senso comum e a experiência ordinária. Para os modernos, em contraste, a filosofia e a ciência são propensas a radicalmente conflitar com o senso comum e a experiência ordinária, e podem de fato até mesmo descartá-la completamente.

(Esta não é uma diferença concernente a se aceitar os resultados da ciência moderna, a propósito. É uma diferença sobre como interpretar tais resultados. Por exemplo, é uma diferença sobre se tratamos a ciência moderna como fornecendo uma descrição correta mas meramente parcial da realidade – uma descrição que precisa ser suplementada por e inserida em uma metafísica e filosofia da natureza aristotélicas – ou sobre se a tratamos como uma descrição exaustiva da natureza, e uma metafísica completa por si só.)

A atitude dos primeiros modernos de tratar a natureza como uma testemunha hostil – de pensar que a verdade sobre a natureza é largamente contrária ao que a experiência ordinária indicaria – é uma das fontes da tendência moderna de supor que "as coisas nunca são o que parecem", que ideias tradicionais são tipicamente meros preconceitos, que autoridades e histórias oficiais de todo tipo precisam ser "desmascaradas", e assim por diante. Michael Levin chamou isso de "falácia do leite desnatado", e eu tenho regularmente notado algumas das suas consequências sociais e morais (e.g. aqui, aqui, aqui). Mas isso é meramente um subproduto de uma revolução metafísica e epistemológica mais profunda.


1 META

Table 1: META
Título Putting nature on the rack
Autor Edward Feser
Link https://edwardfeser.blogspot.com/2016/03/putting-nature-on-rack.html
Arquivo http://archive.is/jFnw8

Footnotes:

1

A Few Good Men, filme de 1992, com Cruise e Nicholson. O personagem, acaso queira saber, se chama Nathan Jessup, coronel da Marinha.

2

L. A. Confidential, filme policial de 1997, baseado no livro de James Ellroy.

3

No original, waterboard. Refere-se a uma simulação de afogamento, em que a pessoa é amarrada a uma cama inclinada, com a cabeça direcionada para o chão. Em intervalos regulares de acordo com a respiração, o torturado tem o rosto molhado e água lançada nas vias respiratórias.

Created: 2018-11-11 dom 23:46

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