sábado, 1 de abril de 2017

É Errado Mentir Para HAL? [Edward Feser]

É Errado Mentir Para HAL?

É Errado Mentir Para HAL?

Enquanto ainda estamos em 2010, vamos falar de 2010 [nt-01]. Eu tive uma ocasião para asisti-lo recentemente, e ainda que não seja tão bom quanto 2001 [nt-02], continua sendo um belo filme (não obstante sua ingênua abordagem "mas não podemos todos ser amiguinhos?" típica dos progressistas dos anos 80 acerca da Guerra Fria). Há uma cena grandiosa na qual Dr. Chandra, que foi orientado a mentir para HAL (o computador que famosamente descontrolou-se em 2001 mas foi reiniciado em 2010), luta com sua consciência até finalmente decidir falar a HAL a verdade. Seria errado ele agir de outra forma?

Do ponto de vista da teoria clássica de lei natural, mentir é sempre intrinsecamente errado. Pois, como Aquino argumenta [nt-03], mentir é diretamente contrário ao fim natural de nossas faculdades comunicativas, que são para transmitir o que realmente está em nossas mentes. Hoje em dia, a visão que mentir é inerentemente errado é considerada excêntrica ou mesmo insana, mas historicamente não é incomum. É possível encontrá-la em Aristóteles, por exemplo, e em Kant. E enquanto eu não iria longe demais a ponto de dizer que nenhuma pessoa racional poderia disso duvidar, eu sugeriria que isto só se dá em uma cultura tão moral e intelectualmente apodrecida como a nossa por seu pensamento anti-essencialista e consequencialista [nt-04] que poderia parecer (como ocorre a muitas pessoas hoje) bizarra demais para levar-se a sério. Historicamente, a maioria das culturas entendera que o que é bom para nós é de alguma forma determinado pelos fins que a natureza estabelecera para nossas várias capacidades, e (adequadamente) que algumas coisas são intrinsecamente ruins porque são contrárias a estes fins. E que é por isso que a visão de que mentir é inerentemente imoral não é historicamente incomum. Enquanto sempre teve aqueles que duvidavam disso, a maioria das pessoas historicamente poderia ao menos entender por que mentir poderia ser inerentemente ruim.

Também é importante ser preciso sobre o que esta visão realmente é. A asserção não é que devamos sempre contar aos outros o que de fato está em nossas mentes. Nós podemos (e algumas vezes devemos) nos manter em silêncio, ou mudar de assunto, ou tentar distrair o ouvinte, ou de alguma outra forma evitar dizer o que de fato pensamos. Podemos brincar e fazer anedotas, ou atuar num filme ou peça, porque é geralmente subentendido que as palavras que dizemos nesses contextos nem mesmo pretendem expressar nossos reais pensamentos. Podemos usar expressões que poderiam em um sentido literal serem falsidades mas que por uma matéria de convenção têm sido usadas de uma maneira eufemística não-literal. (Por exemplo, "Ele não está", quando dito por uma secretária, geralmente é entendido como sendo uma forma polida de dizer que, estando a pessoa ou não presente, ela não quer atender chamadas ou visitas; "Gostei desse teu vestido!" geralmente é entendido como ser o tipo de coisa que se poderia dizer polidamente mesmo que não se ache mesmo isso do vestido. E assim por diante.) Relativo a isso, não é necessariamente errado falar com uma reserva mental - por exemplo, usar palavras geralmente entendidas como ambíguas de tal forma que o ouvinte poderia plausivelmente determinar seu verdadeiro intento, apesar de que o falante sabe que o ouvinte irá provavelmente entendê-los de forma diversa. Finalmente, nem toda mentira é gravemente imoral; em termos católicos, mentir nem sempre é pecado mortal, mesmo quando feito com suficiente conhecimento e deliberação. Contexto e matéria abordada são relevantes para sua gravidade.

Ainda assim, uma mentira real - deliberadamente falar ou de outra forma comunicar de uma maneira que é inambiguamente contrária ao que realmente se pensa - é sempre no mínimo levemente imoral. A teoria clássica de lei natural não afirma que não devemos jamais usar uma capacidade natural de outra maneira que não seja seu fim natural, ou mesmo, necessariamente, que devemos usá-la afinal. Mas ela diz que não podemos usá-la enquanto ao mesmo tempo frustrando seu fim natural. E é isso o que mentir envolve na medida que implica usar a fala nas suas faculdades comunicativas enquanto deliberadamente frustrando o fim natural da comunicação. (Eu não vou abordar o caso para a teoria clássica de lei natural aqui. Vejam Aquinas [nt-05], em especial o capítulo 5, para a teoria geral; The Last Superstition [nt-06], em especial o capítulo 4, para uma aplicação ao tópico da moralidade sexual; e meu artigo "Classical Natural Law Theory, Property Rights, and Taxation" [nt-07] para uma aplicação a questões relacionadas à propriedade privada. A primeira metade deste último artigo contém também um rascunho da teoria geral, porém o pano de fundo metafísico é mais completamente apresentado nos livros.)

Retornando à nossa questão original, então, o Dr. Chandra teria feito algo imoral ao mentir a HAL? Dado o que foi dito, a resposta pareceria óbvia: se ele deliberadamente informou a HAL algo que ele sabia ser falso, ele estaria frustrando a finalidade natural da fala comunicativa e portanto agindo imoralmente. Mas as coisas não são tão simples. Afinal a comunicação é por sua natureza interpessoal. Como os teóricos da lei natural que escrevem sobre esse assunto gostam de colocar, você não pode mentir para seu cachorro mesmo que intencionalmente profira algo falso para ele. Então, enquanto é verdade que Dr. Chandra teria feito algo imoral acaso mentisse para HAL, há outra questão se ele realmente poderia ter mentido para HAL mesmo que tentasse. Afinal isso seria possível somente se HAL fosse uma pessoa. HAL é uma pessoa?

Naturalmente, alguém que aceita a concepção computacionalista da mente [nt-08] poderia dizer que HAL é uma pessoa. Mas eu diria que ele não é. Isto é em parte por razões baseadas no aristotelismo-tomismo. Uma pessoa é uma substância individual de natureza racional, e artefatos não são substâncias no sentido estrito. Além disso, racionalidade implica imaterialidade. Portanto, sendo HAL (como qualquer outra máquina) inteiramente material, não pode ser racional; e sendo um artefato e portanto não sendo uma verdadeira substância, não pode possivelmente ser uma pessoa. (Obviamente isto é apenas um sumário; veja o capítulo 4 de Aquinas para os detalhes.) Também há os argumentos contra o modelo computacional da mente avançados por Hubert Dreyfus [nt-09] e John Searle, que considero decisivos. Particularmente importante é o argumento do artigo de Searle, "Is the Brain a Digital Computer?" [nt-10], que é menos conhecido que seu famoso argumento da sala chinesa mas mais fundamental e devastador. (Ele também pode ser encontrado no capítulo 7 do seu livro The Rediscovery of the Mind [nt-11].)

Obviamente este é um assunto amplo, e não é possível estabelecer um ponto final aqui. Mas se HAL de fato não é uma pessoa afinal, mas apenas um dispositivo que imita o padrão de fala de uma pessoa, então mesmo que Dr. Chandra intencionalmente tenha dito algo falso a HAL ele não estaria mentindo. Suas ações seriam análogas àquelas dos que, por diversão, usam o comando de voz "dois mais dois são cinco" para ativar um sistema de alarme. Portanto, Chandra não deveria ter escrúpulos acerca de "mentir" para HAL, porque ele não estaria verdadeiramente mentindo afinal.

É interessante, porém - e, diria eu, notável - que os produtores do filme pensaram, muito corretamente, que este ponto do enredo tinha interesse dramático. Arthur C. Clarke (o autor dos romances 2001 e 2010) certamente não tinha nenhum machado legal ou teológico para esmerilar, e certamente os diretores também não. E ainda assim eles claramente intentaram para que a audiência tomasse o dilema moral de Dr. Chandra seriamente. Independente do que possamos dizer, Chandra trata HAL como pessoa que "merece" ouvir a verdade: "Se somos baseados em carbono ou sílica, não faz nenhuma diferença fundamental, nós devemos, cada um, ser tratados com o devido respeito!". Não é esperado que pensemos: "Ah, fala sério, mesmo assim, é óbvio o que Chandra precisa fazer. As vidas dos tripulantes estão em risco. E HAL provavelmente será destruído de toda forma, então é melhor para ele também pensar de outra maneira, por sua própria paz de mente. Considere as consequências de contar-lhe a verdade! O que Chandra é, algum tipo de absolutista reacionário da lei natural?". Em vez disso, espera-se que pelo menos entendamos porque Dr. Chancra sente-se desconfortável mentindo, e de fato considerar sua decisão final de contar à HAL a verdade como nobre.

Parece então que, ao menos entre algumas das audiências progressistas e seculares para as quais um filme como 2010 tem por intenção apelar, as quais provavelmente escarneceriam da posição da lei natural acerca da mentira como bizarra e extrema, mesmo assim encontram-se em compreensão solidária com algo do tipo quando é apresentado num contexto ficcional. Não obstante o quanto nós podemos tentar encobrir isto com alguma teoria moral revisionista conscientemente articulada, a nossa incipiente compreensão inconsciente da lei natural pode vazar de formas inesperadas.

(Esta dissonância cognitiva encarada diante do que as audiências progressistas gostam de ver em seus heróis ficcionais mas critica em seres humanos reais é algo que abordei antes, em um post sobre Watchmen [nt-12]. Eu discuti previamente as questões metafísicas levantadas por filmes de ficção científica em um post sobre The Fly [nt-13].)


Notas e Links

nt-01

http://en.wikipedia.org/wiki/2010_(film)

nt-02

http://en.wikipedia.org/wiki/2001:_A_Space_Odyssey_(film)

nt-03

http://www.newadvent.org/summa/3110.htm

nt-04

http://www.intellectum.org/articles/issues/intellectum6/en/ITL06p005015_Why%20I%20am%20not%20a%20consequentialist_David%20S%20%20Oderberg.pdf

nt-05

http://www.amazon.com/Aquinas-Beginners-Guide-Edward-Feser/dp/1851686908/ref=pd_sim_b_1

nt-06

http://www.amazon.com/Last-Superstition-Refutation-New-Atheism/dp/1587314517/ref=pd_bxgy_b_text_b

nt-07

http://journals.cambridge.org/action/displayFulltext?type=1&fid=6819880&jid=SOY&volumeId=27&issueId=01&aid=6819872

nt-08

http://plato.stanford.edu/entries/computational-mind/

nt-09

http://books.google.com/books?id=7vS2y-mQmpAC&printsec=frontcover&dq=hubert+dreyfus&hl=en&ei=Ie3UTIiBM4y6sAOLsfSNCw&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=2&ved=0CDIQ6AEwAQ#v=onepage&q&f=false

nt-10

http://users.ecs.soton.ac.uk/harnad/Papers/Py104/searle.comp.html

nt-11

http://books.google.com/books?id=eoh8e52wo_oC&printsec=frontcover&dq=john+searle&hl=en&ei=c-3UTKHvCIy-sQOJ5o2NCw&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=8&ved=0CFQQ6AEwBw#v=onepage&q&f=false

nt-12

http://edwardfeser.blogspot.com/2009/08/rorschach-test.html

nt-13

http://edwardfeser.blogspot.com/2010/05/metaphysics-of-fly.html


META

Título Original

Is it wrong to lie to HAL?

Autor

Edward Feser

Link Original

http://edwardfeser.blogspot.com.br/2010/11/is-it-wrong-to-lie-to-hal.html

Link Arquivado

http://archive.is/mzHUL

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