segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Contra Neuro-Bobagem [Edward Feser]

Contra Neuro-Bobagem

Contra Neuro-Bobagem

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Cada letra escrita da palavra em português "sopa" é feita de marcações que se parecem vagamente com "s", "o", "p" e "a". É claro, não segue que a palavra "sopa" é idêntica a qualquer coleção de tais marcas, ou que suas propriedades seguem as propriedades materiais de tais marcas, ou que ela possa ser explicada inteiramente em termos das propriedades materiais de tais marcas. Qualquer um que pensa no assunto sabe disto.

Para tomar emprestado um exemplo do psicólogo Jerome Kagan, "Enquanto um observador lentamente se aproxima da pintura do amanhecer no Siena feita por Claude Monet chega um momento em que a cena dissolve-se em pequenas pinceladas de cor". Mas não segue que sua situação e qualidades como pintura se reduzem a, sobrescrevem, ou possam ser explicadas inteiramente em termos das propriedades materiais das pinceladas de cor. Qualquer um que imagina o assunto sabe disso também.

Por algum motivo, porém, quando neurocientistas descobrem alguma correlata neural deste ou daquele evento ou processo mental, uma certa espécie de materialista conclui que a identidade da, ou sobrescrição, ou redutibilidade a, ou completa explanação da mente em termos de processos neurais é tudo menos um assunto acabado, e que as reservas de não materialistas são apenas má fé muito intelectualmente desonesta. Em uma peça aberta online recentemente para o New York Times, e numa frase apropriada, o filósofo da mente Tyler Burge critica esta tendência como "neuro-bobagem", que produz apenas "ilusão de conhecimento". Pois isto é tão falacioso quanto qualquer argumento paralelo sobre palavras ou obras de arte poderia ser.

Agora uma fonte de neuro-bobagem é a suposição materialista padrão mas falsa que as únicas alternativas dualísticas para uma "abordagem" naturalista da mente são ou o dualismo de substância cartesiano ou o dualismo de propriedade, com seu problema da interação de brinde. Para ter certeza, e como eu tenho notado muitas vezes, materialistas geralmente descompreendem profundamente mesmo estas formas de dualismo (ou pelo menos as formas cartesianas) e dirigem suas objeções em espantalhos toscos. [Para alguns exemplos, veja este post em Daniel Stoljar, e minha série de quatro posts sobre Paul Churchland, aqui, aqui, aqui e aqui. Para uma discussão sobre a superficialidade dos argumentos materialistas em geral, veja este post em Frank Jackson e este post sobre (o não-raso) Noam Chomsky.

Ainda assim, de um ponto de vista aristotélico-tomista (A-T), mesmo o dualismo cartesiano é um erro modernista, o "irmão malvado" do materialismo. Ele exagera a divisa entre mente e matéria, assim como o materialismo exagera a afinidade deles. (Para o A-T, muitas posições são "gêmeos malignos" neste sentido – racionalismo e empiricismo, libertarismo e socialismo, deontologia kantiana e utilitarismo, e por aí vai – cada um removendo um entendimento genuíno do modelo metafísico clássico no qual ele faz sentido e então confundindo-o com uma grotesca caricatura de si mesmo ignorando o entendimento oposto em balanceamento. Eu estive pensando em escrever um post sobre o assunto, mas ele é abordado ao menos indiretamente no The Last Superstition.)

A abordagem A-T é aquela que David Oderberg chamara "dualismo hilemórfico". Ao contrário do dualismo cartesiano, que encara o ser humano como composto de duas substâncias, res cogitans e res extensa, dualismo hilemórfico encara o ser humano como uma substância simples. Mas ao contrário do materialismo, que tende a encarar substâncias como redutíveis a suas partes componentes e que é comprometida com uma concepção mecanicista da matéria que nega a realidade de causas formais e finais, dualismo hilemórfico é não-reducionista, e encara seres humanos, bem como todas as substâncias materiais, como compostas de forma e matéria. (A visão é não-reducionista apesar de encarar substâncias materiais como compostas de forma e matéria, porque ela não as reduz a forma e matéria. Uma árvore, por exemplo, é um composto de certo tipo de forma e matéria, mas a forma e matéria em si não podem fazer sentido à parte da árvore de quem elas formam partes metafísicas. A análise é holística.)

"Alma" nesta visão é apenas um termo técnico para o corpo vivo. E a visão é dualista, não porque afirma a existência da alma (plantas e animais não-humanos têm formas, e portanto "almas", mas são puramente materiais) mas em vez disso porque toma seres humanos como tendo capacidades especiais que não envolvem um órgão material – a saber, suas capacidades intelectuais. Não existe nenhum "problema de interação" para o dualismo hilemórfico, porém, porque a alma não é (como o é para Descartes) uma substância distinta que precisa de algo para entrar em contato com uma substância material via causação eficiente; ela é em vez disso apenas parte de uma substância completa – a causa formal da substância, de quem a matéria compondo o corpo é a causa material. O relacionamento entre alma e corpo portanto não é como aquele de duas bolas de bilhar, uma delas fantasmagórica, que tem de encontrar uma maneira de tocar uma na outra. É mais como o relacionamento entre o formato de um triângulo e a tinta que foi usada em seu formato – dois aspectos de uma coisa, em vez de duas coisas. Ou é como o relacionamento entre o significado de uma palavra e as letras que fazem a palavra, ou o relacionamento entre o conteúdo pictórico de uma pintura e as manchas de cor que fazem a pintura. (Provavelmente a maioria de meus leitores estará familiarizada com estas ideias, mas para aqueles que não estão, eu tenho falado delas em detalhes em muitos outros lugares, mais completamente no capítulo 4 de Aquinas.)

Um problema com muitas alegações feitas pelo reducionismo materialista, então, é que eles repousam em um conceito de relações parte-para-todo em substâncias materiais que é (na visão A-T) falsa ao longo de todo o tabuleiro, não meramente onde o relacionamento mente-cérebro está relacionado. É falso dizer que uma árvore "nada mais é" que uma coleção de raízes, tronco, folhas, seiva, etc., mesmo que uma árvore, é claro, tenha estas partes. É falso dizer que um triângulo "nada mais é" que as partículas de tintas que fazem suas linhas, que uma palavra "nada mais é" que as marcas materiais que compreendem seus símbolos, ou que uma pintura "nada mais é" que as pinceladas de cor que o pintor colocou na tela, ainda que estes objetos também tenham as partes em questão. E é falso dizer que a mente "nada mais é" que uma coleção de processos neurais, mesmo que processos neurais de fato estejam por baixo de todas as nossas atividades neurais. (Você não precisa ser um teorista A-T para ver isto, a propósito. Veja M. R. Bennett e P. M. S. Hacker, Philosophical Foundations of Neuroscience para uma cuidadosa crítica deste conceitualmente descuidado e falacioso pensamento que permeia muita da discussão filosófica e "científica" sobre o cérebro.)

Agora, desde que A-T está comprometido com um tipo de dualismo, apesar de ser de variedade hilemórfica – e portanto, mantém que operações intelectuais não tem órgão corporal – pode parecer surpreendente que eu deva dizer que "processos neurais de fato estão por baixo de todas as nossas atividades mentais". Mas é exatamente isto o que de fato o dualista hilemórfico afirma. A razão é esta. Mantenha em mente primeiro de tudo que tudo que A-T trata sensação e imaginação – aqueles fenômenos "mentais" que temos em comum com outros animais inferiores, e que são caracterizadas pelo que filósofos contemporâneos chamam "qualia" – como corporal ou física em natureza, em certo sentido inteiramente material. Para se certificar, A-T tem uma concepção de matéria diferente da que os materialistas têm. Por exemplo, A-T não mantém que as únicas propriedades da matéria são aquelas descritas pelo físico moderno. Mas o ponto relevante para os presentes propósitos é que A-T não trata sensação e imaginação per se como envolvendo alguma espécie de órgãos propriedades imateriais, tudo que sobrevive à morte do corpo, ou qualquer coisa que nos distinga de bestas.

O que nos distingue do bruto e implica imaterialidade é nosso entendimento de conceitos ou ideias universais. Uma razão pela qual pensamento conceitual não pode ser material é que conceitos e as ideias que os caracterizam são abstratas e universais, enquanto objetos e processos materiais não inerentemente concretos e particulares; outro é que conceitos e pensamentos que os caracterizam são (pelo menos algumas vezes) exatos, determinados e não-ambíguos, enquanto objetos e processos materiais são inerentemente inexatos, indeterminados e ambíguos quando eles são associados com o conteúdo conceitual afinal. Há outras razões também. (Estes são assuntos que eu abordei muitas vezes. para um tratamento mais detalhado, veja os capítulos seis e sete de Philosophy of Mind e, mais uma vez, o capítulo quatro de Aquinas. Alguns posts relevantes podem ser encontrados aqui e aqui. E veja também os artigos de James Ross, "Immaterial Aspects of Thought" e David Oderberg, "Concepts, Dualism, and the Human Intellect".)

Sendo no mais tudo igual, dado que a alma na qual o intelecto é um dos poderes é por sua natureza orientado para o corpo, no qual é a forma, o intelecto humano – ao contrário do intelecto dos anjos, que são semelhantes às substâncias imateriais cartesianas – requer atividade corporal como condição necessária para sua operação ordinária, ainda que não seja uma condição suficiente. Por um lado, ela requer que existam órgãos sensoriais para gerar as sensações a partir das quais "fantasmas" ou imagens mentais podem sor derivadas, a partir das quais por sua vez o intelecto pode abstrair conceitos. Mas também (e mais para o ponto presente) requer que existam órgãos capazes de gerar fantasmas ou imagens mesmo após a sensação ter cessado; quer dizer, ela requer os processos neurológicos por detrás da imaginação. Pois mesmo que nosso conceito de um triângulo (por exemplo) não é e nem pode ser identificado com qualquer imagem de um triângulo — tal imagem sempre terá características que faltam no conceito, estritamente se aplicará apenas a alguns tiângulos enquanto o conceito se aplica a todos, pode ser vago em certos aspectos, e assim por diante — não obstante somos incapazes de receber o conceito de um triângulo sem ao mesmo tempo formar alguma imagem de algum tipo (uma imagem mental de um triângulo, ou a observação ou o som da palavra "triângulo", ou o que seja).

Uma analogia útil seria a concepção de Frege sobre o relacionamento entre proposições e sentenças. Uma proposição não pode ser identificada com uma sentença; por exemplo, a proposição que a neve é branca não pode ser identificada com a sentença "A neve é branca", porque um falante de alemão em vez de português poderia expressar exatamente a mesma proposição usando a sentença "Schnee ist weiss". Porém, ela também não pode ser identificada com nenhuma outra sentença ou coleção de sentenças, desde que a proposição de que a neve é branca era verdadeira antes mesmo de qualquer linguagem vir a existir, e permaneceria verdadeira ainda que toda linguagem deixasse de existir. Resumindo, proposições não são entidades linguísticas. Tudo mais sendo igual, elas não podem ser assimiladas por nós exceto por meio de entidades linguísticas. A proposição que a neve é branca não é idêntica à "A neve é branca" ou "Schnee ist weiss", mas você não pode apreendê-la sem apreender qualquer uma dessas sentenças, ou uma sentença em alguma outra linguagem. Como Frege coloca em seu artigo "The Thought": "O pensamento, ele próprio imaterial, se reveste da vestimenta material de uma sentença e por meio disto se torna compreensível para nós". (Frege está usando "pensamento" aqui para referir-se a uma proposição, i.e. ao conteúdo de um "pensamento" no sentido mentalístico do termo.)

Agora, ao contrário de Frege, Aristóteles e Aquino não são realistas platonistas. Mas eles são realistas moderados, e afirmariam algo como o ponto básico de Frege. Não apenas as proposições que nós apreendemos tendo pensamentos, mas os pensamentos em si, são imateriais e distintos de quaisquer imagens visuais ou auditivas que nós pudéssemos formar de sentenças particulares. Mesmo assim nós achamos impossível apreender uma proposição, e portanto ter um pensamento, sem também formar ou imagens ou sentenças ou alguma outra imaginação. E na visão de Aristóteles e Aquino, toda imaginação é, como eu tenho dito, corpórea e portanto material. Como Aquino conclui no Livro I capítulo 2 de seu "Comentário ao De Anima de Aristóteles", "desde que não se pode ter uma imaginação sem ter um órgão material, parece claro que não pode haver operação intelectual sem a operação da matéria" (como traduzido por Robert Brennan na pg. 192 de sua Psicologia Tomista).

Portanto o teorista A-T afirma que sempre haverá algum correlato material à atividade normal do intelecto humano — não como uma concessão relutante forçada em uma teoria por causa do sucesso da neurociência, mas, pelo contrário, precisamente como a predição da posição A-T como ela tem sido entendida desde o princípio. Fossem Aristóteles e Aquino familiares com os tipos de descobertas neurocientíficas freneticamente cornetadas pelos materialistas como se elas devessem ser um abalo para o dualista, eles responderiam, dando de ombros: "Mas é claro. Eu bem que disse."

O que o A-T nega, novamente, é que e o nível neurológico de descrição, apesar de necessário, não pode nem mesmo bastar para abordar a atividade intelectual. Sempre haverá em princípio alguma degradação entre os fatos da neurociência e os fatos sobre o conteúdo de nossos pensamentos — algo que até mesmo materialistas como W. V. Quine e Donald Davidson afirmaram em bases filosóficas, e psicólogos como Kagan afirmaram com bases empíricas. Para o A-T, a principal razão, como eu tenho dito, tem a ver com o contraste entre o caráter determinado e universal do pensamento conceitual e a natureza particular e indeterminada do processo material — veja o artigo de Ross, anotado acima, para uma apresentação especialmente poderosa deste ponto.

Este, incidentalmente, é o porquê de um teorista A-T está despreocupado pela evidência neurocientífica pela possibilidade em princípio da "leitura de mentes", que geralmente ganha atenção na mídia popular. Invariavelmente, nós somos informados que pelo menos certos tipos de estados mentais podem ser lidos da evidência neurológica com um grau de exatidão que é ao mesmo tempo surpreendente alto e consideravelmente menos que absoluto. Para o A-T, é exatamente isto que deve ser esperado. Se um "fantasma" ou imagem é material, tal que nós podemos em princípio determinar neurologicamente que você está apreendendo tais e tais fantasmas, então as circunstâncias sob as quais você está fazendo isto podem fazer provável que você também esteja apreendendo pensamentos da espécie tipicamente associado com tais fantasmas. Mas probabilidade é o máximo que se pode obter dada a degradação entre os fantasmas ou a imaginação por um lado, e o conteúdo conceitual do outro — especialmente quando o conteúdo conceitual abstrai consideravelmente de qualquer coisa que possamos imaginar, assim como ocorre quando estamos pensando sobre coisas por demais removidas do que podemos diretamente experimentar.

O fato é que o dualismo hilemórfico aristotelista-tomista é a teoria mais claramente consistente com toda a evidência filosófica e neurocientífica. Dualismo cartesiano não é refutado por tal evidência, mas tem que recorrer a medidas indiscutivelmente ad hoc a fim de evitar certas dificuldades (o problema da interação, o fato que certas vezes estamos totalmente inconscientes, e por aí vai). E não existe absolutamente nada na evidência neurocientífica para apoiar versões redutivas do materialismo contra o dualismo de propriedades ou o A-T. Em argumentos para o preferido reducionismo materialista destas alternativas dualistas, todo o trabalho é feito por suposições metafísicas e metodológicas em vez da evidência empírica — por apelos espúrios à Navalha de Ockham, digamos, ou à ilusão que "tudo mais foi explicado em termos materialistas". (Eu digo que o apelo à navalha de Ockham neste contexto é espúrio, porque os principais argumentos para o dualismo não são "hipóteses explanatórias" probabilísticas para as quais considerações de parcimônia são irrelevantes; elas são, de fato, tentativas de uma demonstração estritamente metafísica. Veja os posts de Churchland anexados acima para mais sobre o assunto. E eu digo que a alegação que "tudo mais foi explicado em termos materialistas" é uma ilusão por razões estabelecidas aqui, aqui e aqui, e em posts sobre Jackson e Chomsky anexados acima.)

É claro, dualistas de propriedade, como os teoristas A-T, percebem que os níveis mental e neurológico de descrição são muito mais próximos que os dualistas cartesianos supõem; enquanto materialistas não-redutivos como Davidson ao menos percebem que eles não são tão próximos como materialistas redutivos supõem. Mas cada uma das duas visões ainda sofre dos análogos dos problemas que encaram as mais extremas versões do dualismo e do materialismo. Por exemplo, eles ambos enfrentam o problema do epifenomenalismo, que segue de sua insistência mecanicista comum que toda causação seja entendida no modelo de causação eficiente. Dualismo hilemórfico é o verdadeiro meio entre os extremos, uma visão que tem as vantagens das outras sem as suas dificuldades.

Então por que suas virtudes não são reconhecidas mais abrangentemente? As razões usuais: Há, primeiro, a falta de familiaridade da média acadêmica da filosofia contemporânea com o que os antigos e medievais realmente pensavam. Segundo, existe uma posição dogmática ideológica que a revolução mecanicista moderna anterior — sua negação das causas formais e finais aristotélicas — tem ocupado na vida intelectual moderna, apoiado pelo totalmente desmerecido prestígio que esta revolução tem herdado do sucesso da ciência empírica. (Para detalhes, leia The Last Superstition.) E terceiro, existe o igualmente dogmático e ideológico naturalismo que se sustenta nas costas dos primeiros dois fatores. Como Burge escrevera em outro contexto:

A torrente de projetos nas últimas duas décadas que tentam encaixar causação mental ou ontologia mental em uma 'figura naturalística do mundo' me atinge como tendo mais em comum com ideologia política ou religiosa do que com uma filosofia que mantém a perspectivana diferença entre o que é conhecido e o que é especulado. Materialismo não é estabelecido, ou muito menos suportado, pela ciência. ("Mind-Body Causation and Explanatory Practice," in John Heil and Alfred Mele, eds., Mental Causation, na pg. 117)

1 META

Table 1: META
Título Original Against Neurobabble
Autor Edward Feser
Link Original https://edwardfeser.blogspot.com/2011/01/against-neurobabble.html
Link Arquivado https://archive.fo/wtroY

Created: 2019-02-04 seg 23:57

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Moralidade depende de Deus? [Edward Feser]

Moralidade depende de Deus? (Atualizado)

Moralidade depende de Deus? (Atualizado)

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Não da maneira que muitos pensam. Um leitor pediu-me para comentar neste post de Trent Dougherty no Prosblogion. Dougherty nota que se alguém aceita o essencialismo aristotelista, parece seguir daí que ele deve permitir que moralidade possa ter um fundamento, ainda que não exista um Deus. Pois de um ponto aristotelista de vista, o que é bom para o ser humano, e portanto como devemos tratar os seres humanos, é determinado pela natureza humana, e a natureza humana é o que é, existindo ou não um Deus. Bem, eu penso que Dougherty está mais ou menos certo sobre isto, apesar de que eu qualificaria o que ele disse de maneiras que eu explicarei presentemente. E como eu argumentara em outro lugar (p. ex. em The Last Superstition), não é o ateísmo per se que ameaça a possibilidade de moralidade, pelo menos não diretamente. Em vez disso, o que a ameaça é concepção mecanística ou anti-teleológica (e portanto anti-aristotelista) de mundo natural que ateus modernos geralmente estão comprometidos com, e que eles (falsamente) assumem ter sido estabelecida pela ciência moderna.

Mantenha em mente que de u ponto de vista aristotelista, teleologia ou causalidade final é imanente à ordem natural de uma maneira que não é imanente a artefatos, da maneira explicada em meu recente post sobre natureza VS arte. Para tomar um exemplo daquele post, uma rede feita de cipós de trepadeira não tem sua função de rede inerentemente, mas apenas relativa ao artífice que a impõe externamente. Os cipós por si só, em contraste, têm suas tendências de cipó inerentemente, apenas pela virtude de serem cipós. As tendências de cipó seguem de sua natureza ou forma substancial, enquanto as tendências de rede não são, mas resultam de um mero arranjo acidental (no sentido técnico aristotelista de "acidental"). E então o que é bom para uma trepadeira – isto quer dizer, o que constitui seu florescimento como o tipo de coisa viva que é (tomar água e nutrientes, exibir tal e tal padrão de crescimento, etc.) – é determinado pelos fins que seguem de sua natureza ou forma substancial.

Agora, teoria da lei natural como entendida pela tradição aristotelista-tomista (A-T) pressupõe este entendimento de objetos naturais. Seres humanos, como qualquer outra substância natural, têm uma forma ou natureza substancial, e o que é bom para eles — o que constitui seu florescer — é determinado pelos fins ou causas finais que seguem de ter tal tipo de natureza ou forma substancial. Mas assim como nós determinamos as causas eficientes das coisas sem fazer referência a Deus, assim também nós podemos normalmente determinar as causas finais das coisas sem fazer referência a Deus. E portanto, bem como quando podemos fazer estudo da Física, Química, e semelhantes sem fazer referência a Deus, assim também fazer Ética sem fazer referência a Deus, pelo menos em uma grande extensão. Pois nós podemos conhecer o que é bom para uma coisa se pudermos conhecer sua natureza, e podemos conhecer sua natureza por investigação empírica guiada por uma metafísica consistente (A-T). Pelo menos em uma grande extensão, então, nós podemos saber o que a lei natural diz apenas pelo estudo da natureza humana e à parte de qualquer espécie de revelação divina. É por isso que é uma lei natural. Bondade, ou pelo menos a sua possibilidade, é justamente natural para nós (como Philippa Foot poderia dizer).

Agora obviamente, seres humanos, cipós de trepadeira, e tudo mais não pode, de um ponto de vista A-T, existir mesmo por um instante a não ser que Deus as conserve em existência. Eles também não teriam o poder causal que têm mesmo por um instante se Deus como primeira causa não lhes transmitisse tal poder causal a todo momento. Tudo isto é (eu diria) o que as versões A-T do argumento cosmológico, corretamente entendidas, estabelecem. Semelhantemente, seres humanos, cipós de trepadeira, e outros fenômenos naturais não podem manifestar a teleologia ou causalidade final que eles têm ainda que por um instante Deus não estivesse continuamente "dirigindo-os" para seus fins. Isto é (eu diria) o que a Quinta Via, se corretamente entendida, estabelece. Mas bem como as versões A-T do argumento cosmológico não acarretam que objetos naturais não tenham real poder causal, assim também a Quinta Via não acarreta que objetos naturais não tenham teleologia inerente. Para usar o jargão metafísico tradicional, a realidade das "causas secundárias" é perfeitamente compatível com a ideia A-T que todas as causas naturais devem ultimamente a todo momento derivam seu poder causal de Deus; A-T rejeita firmemente o ocasionalismo. Semelhantemente, a realidade da teleologia imanente ou "embutida" como Aristóteles a entendia é perfeitamente compatível com a ideia de que toda teleologia ultimamente deriva de Deus.

"Ultimamente" é a palavra chave aqui. É porque causas secundárias são reais que a ciência é possível. Quando estudamos o mundo físico, estamos estudando como as coisas físicas em si mesmas comportam-se dada sua natureza, não os atos caprichosos de Deus. E é porque teleologia imanente é real que lei natural é possível. Quando estudamos ética, estamos estudando o que é bom para seres humanos dada sua natureza, não comandos divinos caprichosos. Ultimamente os fatos estudados pela ciência e os fatos estudados pela ética dependem de Deus, porque tudo depende, a cada instante, de Deus. Neste sentido, ciência, ética, e tudo o mais depende de Deus. Mas proximamente ética pode ser feita pelo menos em uma grande extensão sem fazer referência a Deus, bem como ciência natural pode. Neste sentido, muitas verdades morais ainda seriam verdadeiras se, per impossível, não houvesse Deus — da mesma forma que a tabela periódica de elementos químicos seria o que é mesmo se, per impossível, não existisse Deus. (Tudo isso é discutido no capítulo cinco de Aquinas. E veja a primeira metade deste artigo para um rascunho da teoria da lei natural A-T.)

Agora isto não significa que Deus é irrelevante para ética; longe disso. Por uma coisa, apenas parte da lei natural pode se conhecida sem referência a Deus. Por exemplo, que assassinato, mentira, adultério, desonrar os pais, etc. são contrários ao bem para nós pode ser conhecido a partir de um exame da natureza humana, simplesmente. Mas o fato que Deus existe naturalmente tem implicações morais por si só, e desde que para A-T a existência de Deus pode também ser conhecida mediante razão natural, existem certas obrigações religiosas bastante gerais (bem como a obrigação de amar Deus) que podem ser conhecidas mediante razão simplesmente, e portanto formam parte da lei natural. (De fato, estas são nossas maiores obrigações debaixo da lei natural.) Então há o fato que as naturezas das coisas, incluindo natureza humana, derivam ultimamente daquelas ideias no intelecto divino que formam os arquétipos com referência aos quais Deus cria. (Desta maneira moralidade não é para o A-T nem independente de Deus e nem baseada em arbitrários comandos divinos, como expliquei num post sobre a objeção de Eutífron.) Adicionalmente, para A-T, uma abordagem completa da obrigação moral requer referência a Deus como legislador (mesmo se obrigação moral possa proximamente ser explicada com referência ao fim natural da vontade). Finalmente, revelação divina é também necessária para uma abordagem completa da vida moral diária. Por um lado, revelação divina expõe determinados detalhes acerca da moralidade que o intelecto humano é fraco demais para descobrir confiavelmente por si só. Por outro lado, alguns aspectos da lei natural são tão requisitadas que muitas pessoas são realisticamente aptas de viver neles somente se for dada a esperança de recompensa no além-túmulo, ou algum tipo de promessas por revelação divina. (Novamente, todas essas questões são discutidas em Aquinas. Veja o capítulo 8 do primeiro volume de The Science of Ethics de Michael Cronin, para um tratamento útil sobre das bases próxima e definitiva da obrigação moral.)

Apesar disso, desde que em uma grande extensão os fundamentos e conteúdo da moralidade podem ser conhecidos a partir de um estudo da natureza humana, segue que em uma grande extensão moralidade poderia ser como ela é ainda que serres humanos existissem e Deus não. Pois, novamente, moralidade não é é baseada em comandos divinos arbitrários mais que leis científicas são expressões de algum desejo divino arbitrário. Do ponto de vista A-T, "teoria dos comandos divinos" (ou pelo menos a versão tosca da teoria dos comandos divinos que toma as fundações e o conteúdo da moralidade como repousando no absoluto fiat divino) é, diria eu, comparável ao ocasionalismo, e semelhantemente objetável. (Cf. meu recente post sobre Ockham.)

Como eu disse, então, ateísmo per se não é uma ameaça direta à possibilidade própria da moralidade. Alguém que negue a existência de Deus mas aceite o essencialismo aristotélico pode ter bases para aceitar pelo menos parte da lei natural. Assim alguém também poderia endossar uma forma ateísta de platonismo (se é que existe esta coisa). Mas optar por uma visão completamente anti-essencialista e anti-teleológica do mundo — uma que mantém que a ordem natural é inteiramente mecânica e não existe nada além desta ordem — seria, o filósofo A-T argumentaria, minar a possibilidade de qualquer espécie de moralidade afinal. Pois isto remove inteiramente do mundo essências e causas finais, e portanto a possibilidade de fazer sentido do bem como uma característica objetiva da realidade. (Veja The Last Superstition para detalhes.) E desde que o ateísmo moderno tende a definir-se em termos de tal visão radicalmente anti-teleológica ou mecanicista do mundo, ele também é nesta medida incompatível com qualquer possível moralidade.

UPDATE: Frank Beckwitt comenta sobre Dougherty aqui.

1 META

Table 1: META
Título Original Does morality depend on God? (Updated)
Autor Edward Feser
Link Original https://edwardfeser.blogspot.com/2011/07/does-morality-depend-on-god.html
Link Arquivado https://archive.fo/4vKAY

Created: 2019-02-04 seg 22:25

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domingo, 11 de novembro de 2018

"Violência em Palavra e Ação" [Edward Feser]

Violência em Palavra e Ação

Violência em Palavra e Ação

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O sempre útil Dictionary of Scholastic Philosophy de Bernard Wuellner define violência como "ação contrária à natureza de uma coisa". Leitores de Aristóteles e Aquino estarão familiarizados com este uso, que se reflete em sua distinção entre movimento natural e violento. Algumas de suas aplicações desta distinção pressupõem uma ciência obsoleta. Por exemplo, nós sabemos atualmente que objetos físicos não têm movimento rumo ao centro da terra, especificamente, como seu fim natural. Portanto o movimento de um projétil para fora da terra não é violento afinal. Mas a distinção por si só não é obsoleta. Por exemplo, enjaular ou matar um animal é obviamente violento no sentido relevante. É agir contrariamente aos fins naturais do animal.

Violência por si só não é ruim. Quando um leão mata uma gazela, ele age violentamente no tocante a frustrar os fins naturais da gazela. Mas o leão dessa forma cumpre em vez de frustrar seus próprios fins naturais. É bom para o leão fazer isso, ainda que seja mau para a gazela. De fato, impedir o leão de agir violentamente sobre outras coisas seria um ato de violência sobre o leão, na medida em que impediria o leão de fazer o que sua natureza o incita a fazer. Esta violência sobre o leão pode ser uma coisa boa – por exemplo, se você tem uma gazela de estimação que quer proteger.

Note que não há nada de especial sobre os animais aqui, mesmo que a violência que eles infligem e sofrem seja especialmente vívida. Mesmo herbívoros agem violentamente quando comem plantas. Afinal, comer uma planta é frustrar seus fins naturais.

Você pode se perguntar: "Mas a teoria da lei natural não diz que é sempre ruim agir contrariamente à natureza?". Não, não é o que ela diz. Ela diz que é ruim para humanos agir contrariamente à sua própria natureza. Mas, como o leão, um ser humano pode fazer alguma coisa boa agindo contra a natureza de outra coisa, assim como fazemos a todo momento que matamos uma planta ou animal a fim de comer e portanto nos nutrir. O que é bom para uma coisa é determinado pela sua própria natureza, não por uma "natureza" em algum largo sentido abstrato.

Dito isso, desde que seres humanos são animais sociais, o que é natural para outros seres humanos é parte do que é constitutivo do bem de qualquer outro ser humano. Por exemplos, genitores realizam seus próprios fins naturais precisamente ajudando seus filhos a realizar os deles. A raça humana é um tipo de família estendida, e parte do que é bom para nós é agir de uma maneira consistente com todos realizando o que é bom para todos (apesar de nossas obrigações positivas de auxiliar outros a florescer são em geral menos fortes quanto mais removidos eles estão de nós, como eu expliquei noutra feita). Portanto é contrário à lei natural agirmos sobre outros seres humanos da maneira que seria permitido agir sobre plantas e animais não-humanos.

Agora, principal entre nossos fins naturais estão aqueles que seguem de sermos animais racionais, possuindo intelecto e livre arbítrio. Portanto, matar ou de outra forma machucar outros seres humanos não é a única forma de agir violentamente contra eles, no sentido de agir contrariamente à sua natureza. Existe também um tipo de violência envolvida quando agimos contrariamente à nossa natureza racional, recusando-se a interagir com eles no nível do discurso racional ou frustrando suas justas escolhas livres.

Portanto, como animais racionais e sociais, é constitutivo do que é bom para cada um de nós interagir com outros seres humanos de uma maneira que respeite seus intelectos e livres arbítrios. Quando lidando com outros seres humanos, há uma presunção moral de que quando queremos que eles pensem ou façam algo, nós temos que assegurar este resultado persuadindo-os racionalmente em vez de recorrer à força, ameaças ou outros tipos de intimidação, manipulação psicológica ou coisa que o valha.

Esta presunção pode ser suspensa. Por exemplo, crianças geralmente não querem fazer o que seus pais lhes dizem para fazer, mesmo quando o que os pais lhes pedem é perfeitamente razoável e bom para eles. Tais crianças estão agindo contrariamente à razão, e pais têm autoridade para coagi-las ou puni-las pela desobediência mediante meios razoáveis (reprimendas verbais, palmadas, retirada de privilégios, ou qualquer outra coisa).

Uma pessoa insana também pode ser coagida, precisamente porque é incapaz de ação racional e pode ser um perigo para si mesma ou para outros. Aqueles culpados de crimes podem também ter seus direitos a certos bens detidos, o que pode incluir sua propriedade, liberdade, ou em alguns casos até a vida, e eles podem ser coagidos de acordo. De fato, como argumenta Aquino, nossa inclinação em punir malfeitores é ela mesma uma inclinação humana natural e boa, necessária para nosso bem-estar como animais racionais sociais. (Veja o capítulo 1 de By Man Shall His Blood Be Shed para uma defesa e explicação detalhadas da abordagem da lei natural sobre a punição.)

Portanto, punir malfeitores não é uma forma reprovável de violência – e de fato em certo sentido não é uma forma de violência afinal, dado que sua natureza como animais racionais sociais acarreta que esses malfeitores podem ser punidos pela prática do mal, de forma que puni-los não é agir contrário às suas naturezas. De fato, impedir autoridades legais de sequer infligir justas punições seria por si um tipo de "violência" no sentido que estamos considerando, porque seria contrário ao que a lei natural nos requer fazer.

Uma das implicações de tudo isso é que estas condenações hiper-abrangentes da violência são estúpidas e, de fato, imorais. Algumas violências são ruins, mas não toda violência, e algumas vezes ela pode até ser moralmente necessária.

(É reputado a Gandhi ter defendido uma ética de não-violência ao dizer que tomar olho por olho deixaria o mundo inteiro cego. Parece que ele jamais disse isso realmente, o que é algo bom para ele, porque isso é uma coisa bem estúpida de se dizer. O princípio da lex talionis não afirma que você deve infligir em qualquer um um dano proporcional ao que infligiu no oponente. Ele adota que devemos infligir a malfeitores, especificamente, dano proporcional ao que infligiram a inocentes. Mas autoridades legais que infligem dano sobre os culpados não são malfeitores, portanto uma aplicação consistente do princípio da lex talionis não implica que as autoridades devam ser atacadas também. Daí, se a citação pseudo-gandhiana fosse refraseada de maneira a não ter como alvo uma caricatura, ela diria algo como "tomar olho por olho cegaria todos que injustamente tiraram ambos os olhos de outrem". Ou, dado que a maioria dos defensores da lex talionis não pensam que literalmente arrancar olhos é uma boa ideia considerando todas as coisas, uma paráfrase melhor seria "infligir dano proporcional a malfeitores deixaria malfeitores proporcionalmente machucados". Mas então a resposta óbvia a este adágio pseudo-gandhiano seria "Sim, este é o ponto".)

O que foi dito também lança uma luz sobre por que a tortura é moralmente objecionável. O problema com a tortura não é que ela envolva infligir dor ou algo desagradável. Uma criança pode merecer palmadas ou a perda de algum privilégio, e um criminoso pode merecer coisa bem pior, e infligir tais punições não é errado. O problema com a tortura também não é que ela envolva coerção da vontade. Quando um genitor ameaça um filho com punição, ou um policial ameaça atirar em um ladrão de banco se ele não baixar a arma, a vontade é coagida, mas de forma inteiramente justificada.

O problema da tortura é que ela envolve a subversão completa do intelecto e da vontade como um todo, essencialmente tentando reduzir o animal racional a um não-racional. Desta maneira, é contrária à natureza da vítima de uma forma que a mera imposição de dor ou de coerção não é. (Eu sugeriria tentativamente que ela resume-se à perversão de uma capacidade. Afinal essencialmente é uma questão de tentar dobrar o intelecto e vontade de alguém para um certo resultado por meio de um método que subverte o funcionamento próprio do intelecto e da vontade.)

Mais uma implicação da análise da violência dada acima é que responder a um oponente que almeja travar contigo uma via racional com vituperação, ataques ad hominem, intimidação, e coisas do gênero é também um tipo moralmente objecionável de violência. Afinal ela envolve agir contrariamente à natureza racional da pessoa.

Note que não estou afirmando que o engajamento polêmico com qualquer oponente seja necessariamente errado. Como eu argumentei diversas vezes ao longo dos anos (e.g. aqui, aqui, aqui), pode ser legítimo responder a um oponente com aspereza polêmica – em particular, quando o oponente é ele próprio intransigente ou está disparando vitupérios e coisas do gênero. Não existe inconsistência alguma em responder com grosseria retórica àqueles que são retoricamente grosseiros, não mais que em um policial atirando de volta a assaltantes de banco que atiraram primeiro. Em ambos os casos a autodefesa ou a defesa de outrem pode justificar uma resposta severa.

O que estou falando é do caso em que seu oponente não está sendo vituperativo, mas está tentando te apresentar argumentos racionais, e em vez de responder com gentileza você dispara abusos sobre ele, atribui motivações más, zomba dele, e de outras maneiras recusa-se a tratá-lo como um par agente racional. Este é um tipo de violência no sentido que eu descrevi, na media em que o que é por natureza bom para ele, para você, e para a comunidade de animais racionais sociais ao qual ambos pertencem é que vocês abordem um ao outro no nível da razão, e vocês estão agindo de maneira contrária à razão.

Agora, caixas de comentários, fios de discussão de Facebook, trilhas de Twitter e outros semelhantes são por vezes fossos de violência neste sentido da palavra. Em muitas delas, argumentos racionais, quando recebem alguma voz que seja, encontram com pouco mais que atribuições de maus motivos e outros ataques ad hominem, zombaria, e outras formas de sofisma. A ironia é que frequentemente precisamente aqueles que mais ruidosamente professam ser racionais e não-violentos são os mais propensos a este tipo de violência verbal. Por exemplo, os mais convictos oponentes da pena capital e outros defensores da não-violência geralmente evidenciam uma pavorosa incapacidade de construir argumentos racionais, controlar suas emoções, ou abster-se de acumular abusos sobre aqueles que deles discordam. Neo-ateus e proponentes de outras formas de pseudo-racionalismo auto-congratulatório são geralmente culpados da mesma coisa.

Mais ironia pode ser vista naqueles inclinados a acusar os outros de "micro-agressões". Se alguém calmamente tenta dar um argumento racional a alguma conclusão, mesmo uma politicamente incorreta, isto é precisamente o oposto de "agressão" ou violência, porque é um apelo à razão. E se alguém tenta eliminar o debate racional por causa de sentimentos feridos, isto é um tipo de agressão ou violência, precisamente porque é contrário à razão.

Então há a ironia daqueles ostensivamente comprometidos com a paz e a dignidade humana cujas táticas favoritas são acossar publicamente os que deles discordam, impedi-los de falar, agitar linchamento, e outras formas de perturbar a lei e a ordem que são uma precondição do discurso calmo e racional.

Não existe mais clara manifestação de respeito pela dignidade humana de uma pessoa com quem discordamos do que raciocinar com ela - e nenhum insulto mais claro à essa dignidade do que tentar ganhar no grito, intimidá-la ou de outras formas tratá-la como algo incapaz ou indigna de um embate racional. Tais são os tempos orwellianos em que vivemos nos quais aqueles que mais ruidosamente alegam ser contra a violência são também os mais propensos a recorrer à mesma.


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Título Violence in word and action
Autor Edward Feser
Link http://edwardfeser.blogspot.com/2018/10/violence-in-word-and-action.html
Arquivo http://archive.is

Created: 2018-11-11 dom 23:43

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"Pondo a Natureza no Pelourinho" [Edward Feser]

Pondo a Natureza no Pelourinho

Pondo a Natureza no Pelourinho

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O que é que distingue o método científico inaugurado por Bacon, Galileu, Descartes & CIA. da ciência dos medievais? Uma resposta comum é que os modernos exigiam evidência empírica, ao passo que os medievais se contentavam com apelos à autoridade de Aristóteles. A famosa história sobre os críticos escolásticos de Galileu recusando-se a olhar pelo telescópio supostamente serve para ilustrar esta diferença de atitudes.

O problema com esta resposta, é claro, é que ela é falsa. Por um lado, a história do telescópio é (assim como muitas outras coisas que todo mundo "sabe" sobre os escolásticos e o caso Galileu) uma lenda. Por outro, parte da razão pela qual a posição de Galileu encontrou resistência foi precisamente porque existe um tanto de questões no qual esta posição parecia conflitar com a evidência empírica. (Por exemplo, a teoria copernicana predizia que Vênus deveria em certos momentos aparecer com seis vezes o tamanho que apareceria outras vezes, mas inicialmente a evidência empírica parecia não confirmar isto, até serem desenvolvidos telescópios que podiam detectar a diferença; a paralaxe estelar prevista não recebeu confirmação empírica por um longo tempo; e assim por diante.)

Em seguida há o fato que os medievais simplesmente não eram de forma alguma hostis à ideia de que a evidência empírica é a fundação do conhecimento; pelo contrário, era um slogan escolástico padrão o "não há nada no intelecto que não haja primeiro no sentidos". De fato, Bacon considerava seus predecessores escolásticos como se algo por demais ávidos em acreditar na evidência dos sentidos. O primeiro dos "Ídolos da Mente" que ele famosamente critica, a saber os "Ídolos da Tribo", incluía uma tendência em tomar os vereditos da experiência sensória como fato. Na visão de Bacon, os sentidos podem ser enganados com muita facilidade, e precisam ser corrigidos controlando cuidadosamente as condições de observação e desenvolvendo instrumentos científicos. E em geral os primeiros modernos tratavam muito do que os sentidos nos dizem sobre o mundo natural – tais como o que eles nos dizem sobre qualidades secundárias como cor e temperatura - como falsos.

Então, simplesmente não é o caso que a diferença entre os medievais e os primeiros modernos era que estes últimos eram mais inclinados a confiar na evidência empírica. Pelo contrário, há um sentido em que este é precisamente o oposto da verdade.

Acerca do que interessa à evidência empírica, a real diferença, para hiper-simplificar, pode ser posta como se segue. Tanto os medievais quanto os modernos tratavam a experiência sensorial como testemunha crucial para a verdade acerca do mundo natural. Mas enquanto os medievais a tratavam mais ou menos como uma testemunha amigável, os modernos a tratavam mais ou menos como uma testemunha hostil. Você pode, de ambos os tipos de testemunha, derivar a verdade. Mas os métodos serão diferentes.

Consequentemente, uma testemunha amigável pode ser mais ou menos perguntada diretamente acerca da informação que você quer. Isto não significa que ela não precise eventualmente ser estimulada a responder. Mesmo que ela seja honesta, ela pode estar envergonhada ou relutante em divulgar algo embaraçoso, ou apenas não seja muito bem articulada. Isso também não significa que tudo que ela diz deve ser tomado em seu valor de face. Ela pode estar esquecida ou confusa ou apenas enganada agora e de novo. Uma testemunha hostil, em contraste, apesar de ter a informação que você quer, não pode ser perguntada diretamente com confiança. Mesmo que seja articulada, tenha uma memória perfeita, &c, ela pode simplesmente recusar-se a responder, ou pode persistentemente tergiversar, ou pode arrojadamente mentir séria e repetidamente. Portanto, ela pode ter que ser ludibriada para te entregar a informação que você quer, como o personagem de Jack Nicholson em Questão de Honra 1. Ou você pode ser tentado a ameaçá-la e espancá-la, como um daqueles tiras em Los Angeles - Cidade Proibida 2 faria. Então você pode pensar que o cientista aristotélico medieval tenha uma conversação com a natureza, o cientista baconiano moderno tortura 3 a natureza. Daí a notória fala baconiana sobre colocar a natureza no pelourinho, torturá-la para obter seus segredos &c.

Claro, isso é melodramático. E, para sermos justos, o próprio Bacon não parece ter posto as coisas dessa maneira comumente atribuída a ele (i.e. a parte acerca de tortura e pelourinho). No mais tudo igual, os medievais e modernos discordam sobre o grau no qual o mundo da experiência ordinária e o mundo que a ciência revela – o que Wilfrid Sellars chamou de "imagem manifesta" e "imagem científica" – correspondem. Para o aristotélico, a filosofia e a ciência estão largamente em harmonia com o senso comum e a experiência ordinária. Para esclarecer, eles vão a níveis mais profundos da realidade, e corrigem o senso comum e a experiência ordinária ao longo das arestas, mas não descartam completamente o senso comum e a experiência ordinária. Para os modernos, em contraste, a filosofia e a ciência são propensas a radicalmente conflitar com o senso comum e a experiência ordinária, e podem de fato até mesmo descartá-la completamente.

(Esta não é uma diferença concernente a se aceitar os resultados da ciência moderna, a propósito. É uma diferença sobre como interpretar tais resultados. Por exemplo, é uma diferença sobre se tratamos a ciência moderna como fornecendo uma descrição correta mas meramente parcial da realidade – uma descrição que precisa ser suplementada por e inserida em uma metafísica e filosofia da natureza aristotélicas – ou sobre se a tratamos como uma descrição exaustiva da natureza, e uma metafísica completa por si só.)

A atitude dos primeiros modernos de tratar a natureza como uma testemunha hostil – de pensar que a verdade sobre a natureza é largamente contrária ao que a experiência ordinária indicaria – é uma das fontes da tendência moderna de supor que "as coisas nunca são o que parecem", que ideias tradicionais são tipicamente meros preconceitos, que autoridades e histórias oficiais de todo tipo precisam ser "desmascaradas", e assim por diante. Michael Levin chamou isso de "falácia do leite desnatado", e eu tenho regularmente notado algumas das suas consequências sociais e morais (e.g. aqui, aqui, aqui). Mas isso é meramente um subproduto de uma revolução metafísica e epistemológica mais profunda.


1 META

Table 1: META
Título Putting nature on the rack
Autor Edward Feser
Link https://edwardfeser.blogspot.com/2016/03/putting-nature-on-rack.html
Arquivo http://archive.is/jFnw8

Footnotes:

1

A Few Good Men, filme de 1992, com Cruise e Nicholson. O personagem, acaso queira saber, se chama Nathan Jessup, coronel da Marinha.

2

L. A. Confidential, filme policial de 1997, baseado no livro de James Ellroy.

3

No original, waterboard. Refere-se a uma simulação de afogamento, em que a pessoa é amarrada a uma cama inclinada, com a cabeça direcionada para o chão. Em intervalos regulares de acordo com a respiração, o torturado tem o rosto molhado e água lançada nas vias respiratórias.

Created: 2018-11-11 dom 23:46

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sábado, 6 de janeiro de 2018

"Hume, Ciência e Religião" [Edward Feser]

Hume, Ciência e Religião

Hume, Ciência e Religião

Suponha que você compre a famosa análise da causação de Hume, e portanto negue que possamos ter qualquer conhecimento de conexões causais objetivas na natureza (seja porque não há nenhuma - a interpretação tradicional "verificacionista" de Hume - ou porque elas existem mas a mente não pode genuinamente conhecê-las ou entendê-las - a nova interpretação "realista cética"). Você não deveria comprá-la (por razões estabelecidas em The Last Superstition), mas suponha que sim. É entendível por que, em tal caso, você rejeitaria argumentos de Causa Primeira para a existência de Deus. Se não podemos ter qualquer conhecimento de conexões objetivas causais entre as coisas, então não podemos ter conhecimento de uma Causa Primeira.

Mas como, neste caso, você não rejeitaria a ciência moderna também? O teísmo e a ciência natural - a qual parece estar no negócio de descobrir conexões causais objetivas entre os fenômenos - não permanecem ou caem juntos? Uma maneira de contornar isso seria adotando alguma forma de interpretação não-realista da ciência. Você poderia tomar uma visão instrumentalista de que as teorias científicas não nos contam realmente qualquer coisa sobre a natureza das coisas, mas são meras ferramentas úteis para predizer as experiências.

Um problema com esta resposta é que as interpretações não-realistas da ciência são simplesmente implausíveis. Como Hilary Putnam famosamente apontou, o realismo é "a única filosofia que não torna o sucesso da ciência um milagre". Outro problema é que ela discutivelmente não aborda realmente o coração da objeção de qualquer forma, mas apenas retrocede o problema um passo. Pois se você está por tratar teorias científicas como ferramentas para predizer experiências, então parece que você está pressupondo que pelo menos uma coisa no mundo - a própria mente humana experimentadora, ou a sua mente que seja - manifesta regularidades causais que podem ser capturadas por teorias científicas. Mesmo como humeano você faria isso; por exemplo, qua humeano você suporia que as ideias vem, e só podem vir, de impressões antecedentes; que elas são combinadas apenas de acordo com os três princípios humeanos de associação; e assim por diante. Estas parecem ser precisamente regularidades causais, cuja existência garante que existe um conjunto ordenado de experiências para uma ciência instrumental descrever e predizer.

Claro, isto assenta-se pobremente com a própria análise de Hume sobre causação Se (como alega Hume) qualquer efeito pode em princípio seguir de qualquer causa ou de nenhuma causa afinal, de onde ele sai nos falando que toda ideia (à parte do famoso "tom perdido de azul", de qualquer forma) deve derivar de uma impressão antecedente? Se não há "conexões objetivas" necessárias entre causas e efeitos- sendo a própria ideia de conexão necessária um mera projeção da expectativa subjetiva da mente de A na ocasião de B, uma propensão produzida por observadas conjunções constantes de A e B no passado - então por que exatamente as ideias deveriam comportar-se somente de acordo com os princípios da associação?De fato, mesmo a noção de uma "propensão" espera um tal-e-tal efeito, e desta propensão ser "produzida" na mente por constante conjunção, são elas mesmas noções causais. Assim Hume quer dizer que todas essas alegações sobre a mente e sobre causação são elas mesmas meras projeções baseadas em nada além de regularidades observadas na ordem de nossas impressões e ideias, e não têm validade objetiva? Presumivelmente não; de fato, a própria ideia aparenta ser não apenas implausível, mas definitivamente incoerente. Ao mesmo tempo, forçando consistentemente ao longo de um ceticismo humeano radical sobre causação aparentemente exigiria aplicar a análise de Hume sobre causação às próprias alegações de Hume sobre os mecanismos que governam a mente. E enquanto isto certamente minaria argumentos de Causa Primeira, isto também minaria a ciência - precisamente porque minaria qualquer alegação sobre o conhecimento, incluindo a própria teoria de Hume. A leitura tradicional "cética radical" de Hume nos deixa com uma serpente que devora a própria cauda.

Uma estratégia mais promissora para o humeano que quer aceitar a ciência enquanto rejeita a teologia natural seria a de tomar uma linha mais suave "neo-humeana" ou de "Hume como realista cético", e negar que a análise humeana de causação realmente acarrete tomar uma abordagem não-realista para a ciência em geral ou causação em particular. Pode-se adotar que a posição de Hume meramente acarreta que não podemos conhecer ou entender conexões causais estritas, mas não que tais conexões não existam. A ideia seria então que a visão de Hume de que nossa crença em relações causais objetivas é impenetrável à crítica racional de qualquer maneira, dado que não se pode fazer nada além de aderir a ela dada nossa natureza, o que também acarreta que a ciência embasada nesta crença é algo que dificilmente podemos consistentemente colocar em dúvida. Não obstante, se causação pode de fato ter uma base objetiva mesmo que não possamos saber ou entender, assim também seria a ciência, Portanto nós não precisamos ignorar a ciência, mais do que a causação, como uma ilusão. Nós podemos ser incapazes ou de justificá-la (racionalmente falando) ou de duvidá-la (psicologicamente falando), mas disto não segue que um humeano tem que tratar nossa crença nela como ou sendo falsa ou sendo estritamente sem sentido. (Eu não estou alegando que tudo isso seja plausível ou mesmo coerente considerando tudo o mais, seja como uma interpretação de Hume ou como uma posição defensável por seus próprios méritos. O ponto é apenas que isto é uma posição mais promissora para um humeano adotar se ele quer rejeitar argumentos de Causa Primeira mas aceitar a ciência.)

Ok, então aonde a rejeição aos argumentos de Causa Primeira se encaixam? Por que eles não sobrevivem a um humeanismo "realista cético" menos radical, a exemplo da ciência? Se a mera possibilidade de causas objetivas (ainda que não conhecíveis) unida à nossa fé animal nelas tira a ciência fora do armário, por que não a teologia natural? A resposta parece ser que na visão do humeano, e de fato na do próprio Hume, apesar de não podermos conhecer ou entender as conexões causais objetivas, nós podemos formular critérios para determinar que relações causais propostas em particular são mais provavelmente existentes, se é que realmente existem quaisquer relações causais afinal. E enquanto as teorias consagradas em "nossa melhor ciência" conformam-se a este critério, argumentos para uma Causa Primeira não.

Deste modo chegamos àquela longa e desonesta (ou no mínimo lamentavelmente ignorante) tradição cética de tratar os argumentos tradicionais da teologia natural como se fossem essencialmente pouco mais que hipóteses científicas empíricas de segunda classe, exercícios débeis de raciocínio de "Deus das Lacunas" (uma tradição auxiliada e confortadas por William Paley e seus sucessores). E desta forma o humeano pode ter seu bolo cientificista e comê-lo também. Afinal a ciência é apenas uma extensão daquilo que nada se pode além de crer na "vida comum", fora do estudo do filósofo. Portanto, não obstante ser racionalmente injustificável, ciência está OK; e teologia natural também estaria OK se apenas fosse boa ciência. Nesta visão, não seria a teoria de causação de Hume per se que mina argumentos de Causa Primeira. Em vez disso, a alegação poderia ser que considerações de parcimônia, adequação empírica, &c tornam o teísmo uma "hipótese menos provável" que o ateísmo.

O problema é que, como eu mostrei em The Last Superstition (e dificilmente eu sou a primeira pessoa a mostrar isso), os argumentos clássicos de Causa Primeira não são argumentos empíricos quasi-científicos de "Deus das Lacunas", mas em vez disso eles intendem uma demonstração metafísica. E a metafísica relevante é a do tipo aristotélico, que alega precisamente não fazer nada além de estender o que nós mesmos já tomamos por conhecido na vida comum. Em particular, argumentos aristotélico-tomistas de Causa Primeira intendem mostrar que a existência de uma Causa Primeira é uma precondição necessária de existir qualquer coisa como o que o senso comum entende como "causação" em primeiro lugar. Então, se para o humeano (ou "neo-humeano") nossas crenças de "vida comum" sobre causação (a) podem bem estar corretas, e (b) são legitimamente adotadas por nós apesar de seu estatuto racionalmente injustificável, por que não podemos também aceitar a conclusão de tais argumentos de Causa Primeira? Voltamos mais uma vez a perguntar: se a ciência está OK, por que não a teologia natural?

O humeano pode neste ponto objetar que tais argumentos ainda vão além do que um apelo à "vida comum" poderia ser capaz de justificar, na medida que eles supõem (a) uma metodologia metafísica a priori, e (b) que nós tenhamos uma compreensão transparente das essências das coisas (e em particular de seus poderes causais). Mas enquanto tal objeção pode ter força contra uma teologia natural racionalista do tipo praticada por Leibniz - eu não estou dizendo que realmente tenha, é bom que saiba, apenas estou concedendo isso pelo bem do argumento - ela não tem força alguma contra a teologia natural aristotélico-tomista. Afinal o A-T não argumenta a priori, e não adota que tenhamos em geral um conhecimento completo e transparente das essências; como o empirista, o metafísico A-T insiste que o conhecimento das essências reais deve ser a posteriori, e reconhece limites em nosso conhecimento das essências das coisas. Onde o A-T difere do empirismo é na recusa em colapsar a distinção entre intelecto e imaginação, entre conceitos e imagens mentais - o pecado cardeal do empirismo moderno, do qual todos os seus muitos outros erros seguem. Portanto A-T também rejeita o nominalismo que acompanha este erro principal (ou o embasa, dependendo de como você olha), e rejeita o ceticismo radical acerca de causação, substância, essência etc. que segue em virar-se para o imagismo e o nominalismo.

Por esta razão, enquanto existe uma tensão entre o senso comum e a filosofia mesmo numa visão neo-humeana de causação - afinal, dada a epistemologia e metafísica humeanas, como pode nossa vida comum ser sequer possivelmente verdadeira, dado que conexões causais tornam-se não meramente não-conhecíveis mas também ininteligíveis? -, não existe tal tensão no A-T. A-T realmente é o que P. F. Strawson famosamente chamou de "metafísica descritiva", que deixa o senso comum intacto, enquanto o humeanismo é "revisionista" em seu núcleo, minando exaustivamente o senso comum implicitamente mesmo quando fala hipocritamente da "vida comum". Um "realista cético" humeano tem, quando fora de seu estudo, simular completa ignorância do que aprendeu. Mesmo a mera possibilidade de que o senso comum possa estar correto, a própria inteligibilidade da causação, é descartada quando sua metodologia é tomada seriamente. Nenhuma pretensão do tipo seria necessária no A-T mesmo que o filósofo A-T tenha entretido dúvidas sobre se conhecimento genuíno é realmente possível, dado que não há nada em sua posição (como há na posição humeana) que levanta dúvidas da própria inteligibilidade, e não apenas a conhecibilidade, das causas.

Se realmente vamos levar a "vida comum" a sério, então, temos que levar a sério a metafísica que a torna minimamente inteligível, a saber algo como a metafísica A-T. E isto significa aceitar (assumindo que de outra forma eles são inobjetáveis, como eu argumento em TLS) os argumentos de Causa Primeira que dela segue. Reciprocamente, rejeitar estes argumentos implica rejeitar toda a ideia de que o senso comum está correto mesmo sobre a própria possibilidade de conexões causais objetivas - o que significa por sua vez rejeitar mesmo uma justificação pela "fé animal" de nosso comprometimento com a ciência.

E isto revolve mais uma vez na questão com a qual começamos: Como pode um humeano consistentemente aceitar a ciência e ainda assim rejeitar argumentos de Causa Primeira para a existência de Deus? A resposta inevitável parece ser: não, ele não pode. Até onde um humeano consistente se preocupa, ciência e teísmo permanecem ou caem juntos. Mas daí então não existe boa razão para ser humeano para princípio de conversa, e muitas boas razões para não ser um. Então talvez a questão seja duvidosa.


META
Autor Edward Feser
Link Original http://edwardfeser.blogspot.com.br/2009/06/hume-science-and-religion.html
Link Arquivado http://archive.is/8nFPD